06.11.2023

Como a política econômica de Erdogan desafia o dogma neoliberal

Economia "criativa"

Fábio Picchi

Em sua determinação contra a imposição de juros altos, o presidente deu vigor à economia turca e superou a inflação através do desenvolvimento

O Banco Central turco, ao contrário do brasileiro, está longe de ser independente. Talvez por isso, por não estar sob o controle de tecnocratas hipnotizados por ideias recicladas, oriundas das grandes universidades norte-americanas e europeias, a Turquia leve adiante uma política econômica que talvez seja única. Ao tratar da economia turca, articulistas do semanário britânico The Economist referem-se à política de Recep Tayyip Erdogan ora como “não-ortodoxa”, quando pretendem ser educados, ora como “loucura”, quando não conseguem conter os ânimos diante de tamanha violação dos textos sagrados do neoliberalismo.

Acontece que o livro de cabeceira de Erdogan provavelmente não é “Uma História Monetária dos Estados Unidos”, de Milton Friedman, mas o “Alcorão”, de Maomé. “Nós estamos abaixando as taxas de juros. Não esperem outra coisa de mim,” disse o presidente turco em entrevista a uma emissora de televisão. Segundo o presidente, “como muçulmano”, ele continuaria a seguir os preceitos da fé islâmica (Lira Slides After Erdogan Says Islam Demands Lower Rates, Bloomberg, 19/12/2021).

Assim como nos ensinamentos cristãos, a usura é considerada pecado para o islamismo. Mas apesar de sua ideologia conservadora, Erdogan não é radical em sua aplicação dos ensinamentos. Bancos cobram juros sobre seus empréstimos na Turquia, assim como em qualquer lugar do mundo. O desacordo entre o presidente turco e os porta-vozes dos grandes especuladores é no valor dos juros, muito abaixo do valor que gostariam.

Para os seguidores de Milton Friedman, não há flexibilidade. Inflação é um mero problema monetário, relacionado apenas à quantidade de dinheiro disponível na economia. Para combater esse mal econômico basta aos bancos centrais elevarem as tarifas básicas de juros, dificultando assim o acesso a crédito pela sociedade, diminuindo a quantidade de dinheiro disponível na economia. Pouco importa se a inflação é resultado de um crescimento pujante que não consegue mais se sustentar ou se é consequência de escassez de mercadorias, como o ocorrido durante a pandemia da covid-19, quando muitas indústrias pararam. Pouco importa se o esfriamento econômico causado pela alta nos juros leva empresas endividadas à falência e condena uma ampla parcela dos trabalhadores ao desemprego, causando uma recessão econômica.

A demagogia islâmica de Erdogan é mais maleável que o dogma neoliberal. Para o chefe de Estado turco, as taxas de juros não são apenas um problema moral, de ordem religiosa, argumento que reserva para agitar seus apoiadores. Segundo ele, taxas altas de juros não apenas não são a cura, como são a causa da alta inflação.

“Tenho uma tese de que juros e inflação estão diretamente correlacionados. Quanto mais baixas as taxas de juros, menor será a inflação”, disse Erdogan à CNN, às vésperas das disputadas eleições de maio deste ano, das quais saiu novamente vitorioso. “Neste país, a taxa de inflação cairá com as taxas de juros, de modo que chegaremos a um ponto em que as pessoas ficarão aliviadas. Digo isso falando como economista. Isso não é uma ilusão.” (Turkey’s Erdogan vows to keep cutting rates to fight inflation if re-elected, CNN, 19/05/2023)

Em julho de 2019, o presidente turco demitiu o presidente do Banco Central de seu país antes do final de seu mandato, previsto para acabar em 2020. Murat Çetinkaya havia supervisionado um aumento de 11,25% da taxa de juros em menos de um ano, incluindo um aumento de 6,25% para 24% em setembro de 2018. A medida fez a inflação cair de mais de 20% para cerca de 18% ao ano, como prevê a receita econômica tradicional da burguesia, mas a acentuada redução da tarifa de juros sob a supervisão do novo presidente do Banco Central fez o índice contrair ainda mais, chegando perto de 10% ao final de 2019, estabilizando-se em torno de 15% no ano seguinte, vindicando, de certa forma, a proposta “não-ortodoxa” de Erdogan.

Apesar de ser um aliado do presidente, Murat Uysal não durou muito no comando do Banco Central e em novembro de 2020 foi retirado do cargo após forte desvalorização da lira em relação ao dólar. As reservas cambiais turcas foram consumidas até atingirem seu ponto mais baixo em mais de uma década, conforme o burocrata procurava controlar a taxa de câmbio. O aumento dos juros no final de seu mandato selou seu destino. 

O mandato de Uysal só não foi mais curto que o de seu sucessor, Naci Ağbal, que durou pouco mais de quatro meses no cargo. Agbal contestou a política econômica de Erdogan e continuou a aumentar a tarifa básica de juros, o que levou o presidente turco a substituí-lo por Şahap Kavcıoğlu, aliado que havia publicamente criticado a política de seu antecessor. 

Em cinco anos, Erdogan substituiu cinco vezes o presidente do Banco Central da Turquia. Com Kavcıoğlu, sua tese foi finalmente colocada à prova. Do início de 2021 até as vésperas das eleições gerais deste ano, os juros paulatinamente despencaram de 19% para 8,5%. Ao longo desse período, a inflação turca foi de menos de 20% para um pico de 85,51% em outubro de 2022, colocando em xeque a política do presidente turco. Entre outubro de 2022 e maio de 2023, porém, o índice retraiu para menos da metade, 39,5%.

Erdoganomics

Se não ficou provado que juros e inflação são diretamente proporcionais, como Erdogan diz serem, a tese monetarista também não se sustenta plenamente na Turquia. Apesar da alta de preços em determinados bens de consumo, a economia turca cresceu ao longo do período e o salário mínimo turco aumentou com a inflação, resultando num ganho, ainda que módico, no poder de compra da classe operária turca.

Erdogan conseguiu uma nova “vitória” para sua teoria logo após as eleições. Livre de seus compromissos demagógicos eleitoreiros – a depender do ponto de vista – o presidente turco indicou a primeira mulher à presidência do Banco Central, Hafize Gaye Erkan. Erkan tem um currículo exemplar aos olhos de Wall Street. A formanda de Harvard era uma das executivas do banco californiano First Republic que, no começo do ano, faliu na reação em cadeia que levou os norte-americanos Silicon Valley Bank, Signature Bank e o poderoso suíço Credit Suisse. 

Logo após sua posse, Erkan praticamente dobrou a taxa básica de juros de 8,5% para 15%. Ao final de julho, elevou-a para 17,5%. A inflação seguiu no mesmo passo. Se havia caído progressivamente de 57,68% para 38.21% entre janeiro e junho deste ano, agora disparou para 47,83% em julho. O Banco Central prevê que a inflação feche o ano em torno de 60%. As notícias não são exatamente boas, mas Erdogan pode dizer que estava certo: alta nos juros leva a uma alta inflacionária.

Mas se o presidente turco procurou apaziguar sua relação com os especuladores internacionais com a indicação de Erkan para a presidência do Banco Central, dando aparente independência à instituição, deu ao seu antecessor, Kavcıoğlu, o posto de chefe da agência reguladora do sistema financeiro turco (Meet Turkey’s new central bank governor as ex-First Republic exec takes on soaring inflation, tumbling lira, Market Watch, 9/6/2023).

Há quem atribua o “sucesso” da política econômica de Erdogan à teoria do falecido economista norte-americano Irving Fisher, que postulou que se os juros reais são determinados por fatores econômicos concretos e equivalem à taxa nominal de juros subtraída da taxa de inflação, então ambos estariam diretamente relacionados. Há ainda outras interpretações como a de Gita Gopinath, primeira vice-diretora administrativa do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Segundo Gopinath e seus colegas, as regras aplicadas a países imperialistas, como os da União Europeia e os Estados Unidos, não são automaticamente transferíveis para países de capitalismo atrasado como a Turquia. Para eles, a lógica de aumento de juros para contenção da inflação não surte o mesmo efeito em casos como o turco porque bancos de países atrasados dependem demasiadamente de financiamento externo para sustentarem seus investimentos.

“Mostramos que esses fatos são consistentes com um modelo simples no qual os bancos locais dependem não apenas de depósitos domésticos, mas também dos mercados internacionais para financiamento. No modelo, uma contração monetária dos EUA aperta as condições de financiamento global (taxas de empréstimos internacionais mais altas), além de causar um declínio na demanda global. As taxas de mercado de curto prazo refletem os custos marginais de financiamento dos bancos locais, e estes são uma função tanto das taxas de juros locais quanto das taxas de empréstimos internacionais. Como resultado, o repasse da política monetária para as taxas de curto prazo é incompleto e inversamente proporcional à dependência do banco local no mercado de financiamento global” (Monetary policy cyclicality in emerging economies, Pierre De Leo, Gita Gopinath e  Sebnem Kalemli-Özcan, 14/04/2023).

Como conclusão, os autores “descobrem” que a força que efetivamente controla a economia de países atrasados, em maior ou menor medida, é o imperialismo.

“Da mesma forma, a desconexão entre as taxas de juros e as taxas relevantes de curto prazo  do mercado representa uma manifestação de autonomia monetária incompleta das economias emergentes, uma questão que está no centro das discussões acadêmicas e políticas recentes. Descobrimos que a política monetária dos mercados emergentes segue padrões anticíclicos semelhantes aos das economias avançadas. No entanto, sua ação é transmitida de forma imperfeita aos mercados, pois as taxas de mercado geralmente se tornam pró-cíclicas” (idem).

Mais explicitamente, o ex-presidente do Banco Central turco declarou pouco após sua posse no Banco Central que a desvalorização da moeda turca, que encarece importações e impulsiona a inflação, não estava relacionada com a política monetária local.

“Kavcıoğlu argumentou ainda que a queda do valor da lira em relação ao dólar após a redução das taxas de juros pelo banco era infundada e resultado da política monetária dos Estados Unidos, não da Turquia. Mais da metade da culpa pela queda do valor da lira, disse ele, recai sobre as declarações do Banco Central [Fed] dos Estados Unidos e as decisões tomadas pelo presidente do Fed, Jerome Powell. Ele reconheceu que houve alguma saída de capital da Turquia após a decisão de baixar as taxas de juros, mas que isso não poderia ser superior a US$ 2 bilhões. Ele citou as supostamente fortes reservas centrais da Turquia e uma diminuição no déficit nacional da Turquia como razões pelas quais o valor da lira turca em relação ao dólar não deveria ser tão baixo” (Turkey’s central bank head claims ‘no reason’ for lira to continue losing value, Duvar English, 28/9/2021).

Pode haver ainda mais intenção na sabotagem da economia turca daquilo que indica Kavcıoğlu. Como destacamos em nossa edição publicada na primeira quinzena de maio, em análise prévia às eleições que Erdogan terminou por vencer, há muito interesse por parte do imperialismo em removê-lo do posto que ocupa, entre primeiro-ministro e presidente, há mais de 20 anos. Além da tentativa fracassada de golpe de Estado de 2016, a campanha massiva – e internacional – ao redor do principal líder da oposição turca contra Erdogan nas eleições deste ano não deixa dúvidas sobre a vontade dos grandes monopólios e especuladores de derrubá-lo.

Esse dado aparece economicamente no prêmio de risco de mercado médio para investimentos realizados na Turquia. Nos últimos cinco anos, o índice subiu de 9,6% em 2019 para 11% em 2022 e, até o momento, neste ano, está avaliado em 18,3%. O prêmio de risco indica o retorno para aquele que aplicar seu dinheiro no país e aumenta com as chances de que os retornos não se realizem. No momento, a Turquia possui o segundo maior prêmio de risco da Europa, atrás apenas da Ucrânia, um país que se encontra completamente devastado pela guerra mais violenta no velho continente desde a Segunda Guerra Mundial.

A economia turca

O indicador, controlado majoritariamente por agências reguladoras em Wall Street, não poderia estar mais distante da realidade. Os sinais vitais da economia turca, apesar da inflação elevada, são melhores que os do principal motor da economia europeia, a Alemanha, que apesar de muito mais desenvolvida, enfrenta oficialmente uma recessão, após um ano de contração do Produto Interno Bruto (PIB).

Em 2021, Erdogan saiu em defesa da denúncia do chefe de seu Banco Central e declarou que a Turquia travava “uma guerra econômica por independência”. “Rejeito políticas que façam nosso país contrair, o enfraqueçam, condenem nosso povo ao desemprego, à fome e à pobreza”, declarou Erdogan ao final de 2021, colocando-se frontalmente contra o que referiu-se como um “círculo vicioso de altas taxas de juros e baixas taxas de câmbio” (Erdoğan says Turkey will succeed in ‘economic war of independence’, Daily Sabah, 22/11/2021).

A política do presidente turco é mais contraditória do que faz parecer seu discurso incisivo. Afinal, após prometer que sob sua liderança as taxas de juros continuariam a cair, deu uma guinada de 180 graus assim que foi confirmado seu terceiro mandato como presidente. Ainda assim, sua política mostra um compromisso consequente com a indústria turca.

Ao contrário do PIB alemão, o PIB turco cresce desde a metade de 2020, quando toda a economia global encontrava-se debilitada diante da pandemia da covid-19 – e das políticas públicas desastrosas levadas adiante pela burguesia mundial. No segundo trimestre de 2021, o país apresentou um crescimento espantoso de 22,2%, que se manteve alto, entre 8% e 9% ao longo do ano seguinte. No segundo semestre de 2022, a inflação de quase três dígitos devorou uma parcela significativa dos ganhos de produtividade turcos, mas o crescimento do país continuou positivo, próximo a 4% (Turkey GDP Annual Growth Rate, Trading Economics, consultado em 8/8/2023).

A solidez da economia turca é visível pela resposta ao terremoto catastrófico que assolou a região sudeste, mais pobre do país, e o noroeste do país vizinho, a Síria. O mais recente relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) não consegue esconder a resiliência econômica do país mesmo após um período de pandemia e num cenário de guerra e disrupção da cadeia produtiva global.

“O crescimento econômico deverá moderar-se para 3,6% em 2023 devido a exportações mais fracas, enquanto a procura interna continuará a ser o principal motor do crescimento. O terremoto devastador no início deste ano trouxe danos generalizados no sul da Turquia. No entanto, espera-se que o impulso da reconstrução compense amplamente o impacto negativo da interrupção da atividade econômica” (OECD Economic Outlook, Volume 2023 Issue 1: Preliminary Version, OCDE, consultado em 8/8/2023).

O crescimento econômico reverteu-se num aumento salarial fruto não somente da política econômica nacionalista de Erdogan, mas das frequentes greves da numerosa e organizada classe operária turca. Desde o terceiro trimestre de 2021, os salários nos setores de indústria, construção e comércio crescem segundo o Instituto de Estatística da Turquia e, no primeiro trimestre de 2023, mais do que dobrou com 119,4% de crescimento em relação ao mesmo período no ano anterior (Labour Input Indices, Quarter I: January-March, 2023, Turkish Statistical Institute, 23/5/2023). Esse dado mostra porque a popularidade do presidente turco não erode rapidamente com a alta inflacionária.

A economia turca é relativamente diversificada e seu principal produto de exportação em 2022 foram veículos automotores. Ainda segundo a base de dados da Organização das Nações Unidas sobre comércio internacional (COMTRADE), ficam em segundo lugar as categorias “maquinário, reatores nucleares, caldeiras” e “combustíveis minerais, óleos minerais e produtos de sua destilação”. Os três setores representaram mais de um quarto das exportações em 2022, com destino majoritariamente a Alemanha, Estados Unidos e Iraque.

No outro lado da balança comercial aparece uma limitação importante da economia turca, a importação de combustíveis fósseis, responsável por 27% dos gastos do país com importação. A quase totalidade, 99%, do gás natural consumido pela Turquia é importado. O petróleo não fica muito atrás, sendo 93% importado. Segundo o relatório da OCDE, após o início da exploração de gás natural na região de Sakarya, ao fim de 2023 a produção doméstica deve cobrir 7% do consumo.

Com essas características, e dada sua localização, é natural que o principal parceiro de importação da Turquia seja a Rússia, destino de mais de 18% das despesas com comércio exterior. Em segundo lugar aparece a China, seguida da Alemanha.

O panorama econômico joga um pouco mais de luz nos motivos para a pressão inflacionária sofrida pela Turquia em 2022. A alta nos preços de combustíveis fósseis teve um impacto direto na economia do país mediterrâneo, que apenas pode ser contornada pela boa relação de Erdogan com seu homólogo russo, Vladimir Putin.

Ainda que a relação seja contraditória, como tudo na política nacionalista de Erdogan, a Turquia, como um dos únicos membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) a não sancionar a Rússia, adquiriu o papel extremamente lucrativo de intermediário na venda de combustíveis russos para a Europa. Soma-se a isso que os turcos tenham começado a pagar pelos insumos russos em rublos, poupando suas frágeis reservas em dólar e evitando atrito com os sócios majoritários da OTAN, efetivamente driblando as sanções econômicas contra a Rússia (Turkey starts paying for some Russian gas in roubles, Reuters, 8/11/2022).

Internamente, o país ainda possui uma forte indústria têxtil, fábricas de trens e estradas de ferro e um amplo mercado de turismo. De acordo com relatório da ONU, a Turquia foi o quarto principal destino de turistas em 2022, logo após uma diminuição das restrições em torno da pandemia (World Tourism Barometer, UNWTO Volume 21 Issue 2, 2/5/2023).

Desenvolvimento nacional

Um olhar mais profundo sobre a economia turca permite entender porque a política econômica de Erdogan é eficaz. Com foco no desenvolvimento da indústria local, o político nacionalista consegue equilibrar a pressão externa dos especuladores internacionais, dando à Turquia certa autonomia em relação ao imperialismo. Se em alguns momentos o governo turco faz concessões, a tendência geral busca estabelecer uma taxa de juros que não atue como um verdadeiro freio ao desenvolvimento nacional.

De certa forma, a taxa nominal de juros combatida por Erdogan em 2019 e 2020 implicava uma taxa real, resultado da subtração da inflação da taxa nominal, positiva. Atualmente, com a inflação acima de 40%, a taxa real de juros da Turquia figura entre uma das menores do mundo e está longe de exercer a pressão que faz no Brasil, que conta com juros superiores a 13% e uma inflação inferior a 3%, o que faz da taxa real de juros brasileira a maior do mundo (Visualized: Real Interest Rates by Country, Visual Capitalist, 4/5/2023).

Em razão do centenário da Guerra de Independência Turca em 2023, o governo turco organizou um programa econômico chamado Visão 2023, ainda em 2011. Em 2019 foi publicado um documento elaborado pela recém-criada Presidência de Estratégia e Orçamento, instituição resultante da integração do ministério do Desenvolvimento e da diretoria orçamentária do ministério das Finanças ao gabinete presidencial, inserido na Visão 2023, que delineava os passos a serem seguidos nos próximos quatro anos.

Logo em seu início, o décimo primeiro plano de desenvolvimento turco reconhece a gravidade da crise mundial do capitalismo:

“Apesar das extensas medidas tomadas durante o processo após a crise financeira global em 2008, uma recuperação total ainda não foi alcançada na economia global. A crise financeira global minou a confiança no funcionamento eficiente das economias de mercado liberais, ao mesmo tempo em que afetou severamente a distribuição de renda. Juntamente com o descontentamento causado pelas práticas introduzidas para enfrentar os problemas agudos causados pela crise, as disparidades de renda observadas recentemente entre países e grupos populacionais exacerbaram ainda mais a desconfiança em relação à democracia e às instituições liberais” (Eleventh Development Plan 2019-2023, Presidency of Strategy and Budget, 18/7/2019).

O texto continua, exaltando a crescente hostilidade do imperialismo em relação a seus países vassalos e escravos:

“Espera-se que a abordagem protecionista adotada pelos Estados Unidos da América (EUA) e o Brexit afetem negativamente o comércio e a integração global. Enquanto os EUA, União Europeia (UE) e Japão se concentram em acordos bilaterais, a China tenta expandir sua rede comercial global por meio da Nova Rota da Seda.”

O plano elege seis setores prioritários para o desenvolvimento econômico. As indústrias química, incluindo a petroquímica; de fármacos e dispositivos médicos; eletrônicos, maquinário e equipamento elétrico; automotiva; e de veículos ferroviários. No tópico que trata sobre produção competitiva e produtividade, o documento é claro:

“Durante a vigência do Plano, almeja-se aumentar a tecnologia, a inovação, a qualidade dos produtos e a produtividade nos setores prioritários da indústria de transformação, para transformar a capacidade industrial e torná-la mais competitiva e promover uma produção de alto valor agregado. Todos os setores prioritários estão entre os setores de média-alta e alta tecnologia, portanto, o desenvolvimento desses setores aumentará a demanda por pesquisa e desenvolvimento. Neste quadro, será colocada em prática uma forte abordagem de pesquisa e desenvolvimento e inovação em setores prioritários com enfoque em tecnologias críticas; a exportação de produtos e grupos de produtos adequados às nossas necessidades, infraestrutura industrial e potencial, ao mesmo tempo que possam aumentar nossa competitividade, será apoiada principalmente pelos programas integrados de incentivos.”

Em favor do desenvolvimento da indústria nacional, a tese de Erdogan sobre política monetária é apresentada:

“A alta dos juros prejudica os investimentos, o crescimento econômico e a inflação. A alta taxa de juros aumenta diretamente o custo de produção de bens e serviços e causa inflação; o aumento da inflação aumenta a taxa de juros e desencadeia um círculo vicioso; alta inflação, por um lado, e altos juros, por outro lado, adiaram os investimentos e, consequentemente, fizeram com que a economia ficasse aquém do seu potencial. Portanto, as medidas a serem tomadas para reduzir os juros ajudarão a reduzir a inflação e aumentar os investimentos e, assim, permitir mais produção; consequentemente, o aumento da produção reduzirá a inflação. Ao longo da vigência do Plano, esta abordagem não só conduzirá a uma queda permanente da inflação como também elevará o crescimento aos níveis desejados. Neste contexto, uma das principais prioridades é estabelecer uma política de taxas de juro baixas que estabilize os custos de financiamento incorridos pelos investidores em níveis baixos durante o período do Plano.”

Colocada dessa forma, a proposta desenvolvimentista não apenas faz sentido como expõe os interesses daqueles que defendem os juros altos: transferência de riqueza da Turquia para os especuladores do mercado financeiro e o alijamento da economia turca a fim de impedir o desenvolvimento de potenciais concorrentes dos monopólios imperialistas no cenário internacional. 

O ciclo vicioso descrito no plano de desenvolvimento turco é praticamente a descrição da tragédia que assola a economia argentina nos últimos dois anos. Os juros já altos, próximos de 40%, foram elevados pelo governo, perseguindo a inflação galopante e demolindo a economia do país latino-americano que tem mais da metade de sua dívida pública denominada em dólar. Com a economia em frangalhos, a Argentina precisa exportar mercadorias ou atrair investimentos externos para saldar seus compromissos com o FMI. 

No caso brasileiro, sem a pressão de uma dívida pública denominada em dólar, as altas taxas de juros paralisam a economia mais diversificada dentre os países atrasados, revertendo seu desenvolvimento e transformando o País num porto seguro para os especuladores que buscam um lugar seguro para seus investimentos.

Expansão

Dentre as ambições turcas, ainda aparece como uma “área de desenvolvimento prioritária” a indústria de defesa. Com o segundo maior efetivo militar da OTAN, atrás apenas dos Estados Unidos, o governo turco pretende “fortalecer o ecossistema da indústria de defesa para atender às necessidades de suas forças armadas e forças de segurança com a compreensão do desenvolvimento contínuo com tecnologias nacionais e oportunidades domésticas ao máximo e aumentar as exportações de defesa e garantir a disseminação das habilidades adquiridas na indústria de defesa para o setor civil.”

O impulso para a nacionalização da indústria armamentista turca, apesar do país ser membro de uma aliança com as principais potências militares do planeta, veio com a Guerra do Iraque, em 2003, no início do primeiro mandato de Erdogan, ainda como primeiro-ministro. Após o conflito, os entornos da Turquia nunca mais encontraram sequer um semblante de estabilidade, o que foi agravado com a Primavera Árabe que atingiu um país vizinho à Turquia, a Síria.

Os investimentos no setor provaram-se muito lucrativos para a burguesia turca, além de ter incluído no leque de produtos de exportação da Turquia mercadorias de maior valor agregado. Segundo estudo realizado pela pesquisadora Ayşe Özer em seu livro “The Rise Of The Turkish Defense Industry”, os gastos militares turcos mantiveram-se aproximadamente os mesmos de 2003 a 2018, oscilando de US$ 17,685 para US$ 18,189 bilhões. Por outro lado, no mesmo período, as necessidades das Forças Armadas Turcas, que eram supridas em 25% pela indústria nacional, aumentaram para 60%.

Como exportadora de equipamento militar, a Turquia ampliou seu leque de clientes de Holanda, Paquistão, Emirados Árabes Unidos, Coreia do Sul, Argélia e Barein, em 2011, para mais de 63 países. “Os produtos de defesa exportados pela Turquia em 2016 incluíam aeronaves, peças de helicópteros, motores, veículos terrestres blindados, lanchas, mísseis, foguetes, plataformas de lançamento, sistemas de comando e controle, armas leves, sistemas eletrônicos como transmissor, simulador, sensor e software militar. A demanda por material da indústria de defesa da Turquia é resultado de seus investimentos para criar uma indústria nacional e, ano a ano, a gama de produtos aumenta” (The Rise Of The Turkish, Ayşe Özer, 2019).

Ainda que a indústria de defesa fosse responsável por apenas 1,2% das exportações turcas em 2019, o setor cresceu de US$ 331 milhões em 2003 para quase US$ 2 bilhões, além de cumprir um papel importante na política externa da Turquia. Na última década, o país lançou intervenções militares no Azerbaijão, Iraque, Líbia e Síria. Na Somália, no chifre da África, uma região estratégica, a Turquia possui uma base militar e treina as Forças Armadas locais (Turkey’s Growing Foreign Policy Ambitions, Council on Foreign Relations, 11/7/2023).

Há algo em comum entre todos os países. Além de serem majoritariamente muçulmanos, todos são ricos em combustíveis fósseis, elemento que limita o desenvolvimento turco, sendo o principal responsável pela balança de comércio deficitária do país. Conforme a Turquia destaca-se como uma potência regional, conforme o país atravessa um período de expansão econômica, sua burguesia nacional procura ampliar sua influência sobre países vizinhos e garantir seus interesses. Numa escala muito maior, um movimento similar ocorre, por exemplo, no Sudeste Asiático, com a China.

No Azerbaijão e na Líbia, a presença militar turca é acordada com os governos locais, que pediram apoio. No caso iraquiano e no caso sírio, porém, a intervenção dá-se principalmente pela presença curda, que se consolidada, pode transformar-se numa crise para a Turquia, onde os curdos compõem praticamente um quinto da população. A questão curda, em toda a sua legitimidade, transformou-se numa arma que o imperialismo, principalmente norte-americano, utiliza para exercer sua influência na região – não apenas e nem principalmente contra o desenvolvimento turco – com uma face mais apresentável do que o Estado Islâmico, também combatido pela Turquia.

As aventuras turcas na Síria deram origem a uma hostilidade entre os países vizinhos conforme transparecia o plano turco de tomar controle de parte do território sírio, interessado em seus recursos naturais. O avanço de Erdogan foi contido pelos reforços russos, que vieram a pedido do presidente sírio Bashar Al-Assad. Este ano, diplomatas turcos e sírios encontraram-se em Moscou e Erdogan disponibilizou-se para um encontro com Assad. Já que a intervenção militar chegou a um impasse, um acordo entre os dois países, que se aproximam quanto mais contradições surgem entre o imperialismo e a burguesia nacionalista turca, é o caminho mais vantajoso (Turkey’s Erdogan says he is open to meeting with Syria’s Assad, Reuters, 17/7/2023).

Contradições similares em relação à política externa turca e à sua indústria armamentista apareceram também no confronto travado entre Rússia e OTAN, da qual devemos reforçar, a Turquia faz parte. Os drones turcos Bayraktar TB2 puderam ser vistos no front, do lado da Ucrânia, o que naturalmente foi foco de atritos com o principal fornecedor de combustíveis fósseis turco, a Rússia.

Crescente independência

Como destacamos em edições passadas, como todo movimento nacionalista burguês, o nacionalismo turco de Erdogan é um esforço equilibrista. Um balanço entre o imperialismo e os interesses nacionais. A política econômica turca, porém, aponta claramente para uma rota de colisão com o bloco imperialista, ainda que o governo turco busque não estressar demais suas relações.

É preciso um balanço entre, por exemplo, buscar um acordo de paz na Ucrânia, em oposição frontal à política imperialista, e enviar drones aos ucranianos, num desafio aos russos. Entre integrar a OTAN e comprar jatos S-400 russos, medida que resultou num bloqueio à compra dos jatos norte-americanos F-16, revertido recentemente em troca da autorização da entrada da Suécia no bloco militar, bloqueada por Erdogan por quase um ano até julho passado. O presidente turco sabe jogar com as cartas que tem. Negocia como um mercador num bazar: barganha por cada concessão que tem que fazer.

Outra negociação, fora do âmbito militar, deu-se na política monetária, em torno da taxa de juros. Erdogan resistiu aos clamores de que sua política seria insana, de que seu governo seria uma ditadura que não permite a “independência” do Banco Central turco. Resistiu, angariou apoio popular, denunciou uma “guerra econômica” contra seu país e falou que, sob seu governo, os juros sempre diminuiriam. Ao vencer as eleições, porém, fez uma concessão aos especuladores e já prepara o terreno para a próxima negociação.

Ainda este ano, Erdogan deve receber seu homólogo russo na Turquia para discutir o acordo de grãos entre Ucrânia e Rússia, atualmente suspenso, pelo escoamento da mercadoria pela saída do Mar Negro em direção ao Mar Mediterrâneo, controlada pela Turquia. Essa será a primeira visita de Putin a um estado-membro da OTAN desde o início da guerra (Putin to visit Türkiye – Erdogan’s office, RT, 2/8/2023).

Além de tudo, o presidente turco foi agraciado com a descoberta de reservas de petróleo este ano, estimadas em um bilhão de barris, no que foi a maior descoberta do combustível em terra da história da Turquia (Turkey discovers 1 bln barrels of oil in southeast field, Reuters, 4/5/2023).

A única dúvida que há sobre a exploração desses recursos naturais é sobre quando se dará o seu início. Segundo reportagem da Reuters, a estimativa é que ainda no final deste ano estejam sendo extraídos 100 mil barris por dia, duplicando a produção atual turca. O caso contrasta com o brasileiro, onde se estima haver reservas gigantescas de petróleo na margem equatorial, ao norte do Amapá, mas a exploração sofre com entraves por setores ambientalistas – ou melhor, imperialistas – dentro do próprio governo petista.

A política turca também contrasta em outro aspecto que está no centro do debate sobre o futuro da economia brasileira: a independência do Banco Central. Em reunião realizada no início de agosto, o Comitê de Política Monetária (COPOM) optou por reduzir a taxa Selic em 0,5 ponto percentual de 13,75% para 13,25%. A redução, clamada até mesmo pela burguesia nacional moribunda, veio por cinco votos a quatro, o que demonstra que os tecnocratas ainda pretendem continuar fazendo a economia do País de refém.

Enquanto isso, o Brasil segue com os juros reais mais altos do mundo. Com um PIB nacional que não cresce mais de 2% desde dezembro de 2020, quando havia um impulso da reabertura econômica pós-pandemia. Onde o salário mínimo é de míseros US$ 268,00, em oposição aos US$ 483,00 da “ditadura” turca onde não há independência do Banco Central.

Esse contraste está fazendo diversos chefes de Estado ao redor do mundo questionarem a tão propalada “loucura” econômica de Erdogan. É o tema de recente editorial publicado no semanário britânico The Economist.

“Desde a eleição, a política monetária da Turquia tornou-se um pouco mais razoável, com o aumento das taxas de juros. Isso não impediu que as ideias de Erdogan pegassem nos ministérios das finanças do mundo em desenvolvimento. ‘Eu realmente me pergunto se as teorias clássicas são o caminho para continuar’, pondera Ken Ofori-Atta, ministro das finanças de Gana, que é um dos vários ministros africanos que ponderam essas ideias. ‘Temos que baixar as taxas e manter o crescimento’, disse outro em um recente encontro sobre finanças verdes em Paris. No mês passado, autoridades do Brasil e do Paquistão expressaram sentimentos semelhantes. Em vez de olhar para uma inflação nas alturas, uma moeda em dificuldades ou investidores em fuga, esses ministros se concentram no crescimento do PIB da Turquia, que tem sido notavelmente resiliente, atingindo 5,6% no ano passado. Eles são céticos em relação aos avisos de que tal estado de coisas é insustentável, devido à estagnação da produtividade, que em última análise determina o crescimento de longo prazo, e ao esgotamento das reservas estrangeiras” (Erdoganomics is spreading across the world, The Economist, 6/7/2023).

É admirável o cinismo do porta-voz dos grandes bilionários. Autoridades brasileiras, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, certamente expressaram sua insatisfação em relação à política do Banco Central, mas, ao contrário de Erdogan, nada puderam fazer, pois a instituição é independente do povo brasileiro, do processo democrático. Ela é, porém, totalmente dependente dos banqueiros internacionais.

Erdogan mostra um caminho para o nacionalismo burguês mundial, um caminho menos agressivo e arriscado que o de Putin, na Rússia. Mostra ainda que é possível adquirir certa independência econômica mesmo participando de instituições imperialistas como a OTAN e a OMC. Não apenas é possível, como essa proximidade do imperialismo pode mostrar-se uma excelente oportunidade de barganha. 

Já está sendo preparado um novo plano de desenvolvimento após relativo sucesso com este que termina no ano do centenário de fundação da Turquia. A taxa de desemprego atual está abaixo da meta modesta de 10% estipulada em 2019. O PIB per capita atual do país, compensado pelo poder de compra local, segundo o Banco Mundial, é de US$32.997,70 e terminou abaixo da meta de US$37.423,00, mas é significativamente superior aos US$28.205,00 do início do plano. Para 2028, Erdogan quer mais:

“Com as estratégias a serem desenvolvidas e as práticas a serem implementadas durante o Plano de Desenvolvimento, o bem-estar será aumentado e distribuído de forma mais equitativa, as etapas de desenvolvimento econômico e social serão continuadas e as prioridades serão estabelecidas para eliminar as ameaças representadas pela situação econômica, desequilíbrios sociais, geopolíticos e políticos ao nível global” (President Erdoğan issues ‘Twelfth Development Plan’ Circular, Presidency of the Republic of Türkiye Directorate of Communications, 10/6/2022).

Não há nada de “louco” na política econômica turca do ponto de vista do desenvolvimento da economia nacional de um país atrasado. “Loucos” somos nós, que atuamos em benefício de especuladores internacionais, do imperialismo, a despeito da economia brasileira cada vez mais desindustrializada e financeirizada.

A independência de Erdogan, porém, é naturalmente limitada. As contradições entre os interesses nacionais turcos e o imperialismo não levam a um ponto de acordo, a um “mundo multipolar”, mas a um conflito no qual a burguesia turca não aparenta se interessar. Entre Europa e Ásia, entre OTAN e Rússia, a independência turca cresce, mas é limitada e só será levada até as últimas consequências pela classe operária turca, cada vez mais numerosa graças à industrialização do país.

O cenário político internacional de debilidade do imperialismo e o interesse de diversos países de integrarem-se aos BRICS (bloco econômico composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) são favoráveis para o desenvolvimento das economias de países atrasados. A verdadeira loucura está em perder essa oportunidade.

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