19.01.2024

A repartição do Oriente Médio, por que o imperialismo precisa de um ‘Israel’

Ponto de apoio

Arthur Cesconetto

Formado sob a base da intervenção e divisão das terras palestinas por parte do imperialismo, em um acordo secreto que recortaria o Oriente Médio

Hoje o mundo olha com atenção para os desdobramentos da maior crise do século. Palestinos estão em sua maior rebelião da história contra o Estado sionista de “Israel”. O mundo árabe está prestes a entrar em combustão contra o domínio imperialista e contra seu entreposto. 

Desenvolvido ao longo de décadas, este conflito tem suas bases antes mesmo dos anos 40, quando o Estado sionista de “Israel” foi formado pela ação dos países imperialistas, na época, sobretudo Inglaterra, Estados Unidos e França, em conjunto com o stalinismo. Remonta a um período anterior, de colonização inglesa e francesa da região e da repartição das terras do antigo Império Otomano, derrotado e que entrou em colapso, com o fim da Primeira Guerra Mundial.

Neste sentido, um dos anos mais importantes para a crise no Oriente Médio foi o de 1916. A importância deste ano foi apenas revelada tempos depois, no entanto, naquele momento se reuniam o diplomata inglês Mark Sykes e o diplomata francês François Georges Picot, para decidir o futuro de um povo.

A origem do tratado Sykes-Picot

No dia 16 de maio de 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, a França e o Reino Unido, em uma reunião diplomática, definiam entre si a partilha das enormes áreas do Império Otomano, antecipando em anos as suas vitórias e definindo os rumos dos povos do Oriente Médio a rápidas canetadas.

O tratado secreto ficou conhecido na história como “Sykes-Picot”, em alusão aos diplomatas que participaram da negociação.

A definição de 16 de maio de 1916 estabeleceu que o imperialismo francês teria como posse um território que hoje englobaria a Turquia até o Líbano, envolvendo o norte do Iraque e a Síria. Já o imperialismo inglês ficaria com o centro do Iraque e a região sul das posses do Império Otomano. As terras que estivessem entre ambos, os territórios correspondentes a atual Síria, Jordânia, a região oeste do Iraque e o nordeste da península árabe, corresponderiam a um reino árabe sob controle anglo-francês.

“A própria história da elaboração do Acordo Sykes-Picot é bem um exemplo de perfídia, mentira e traição aos povos da região.”

“A presença da França e da Grã-Bretanha nas províncias árabes do Império Otomano era já antiga. Britânicos e franceses queriam dar uma configuração política diferente ao Médio Oriente árabe através do estabelecimento de novas unidades políticas em substituição das províncias otomanas. Quando rebentou a Primeira Guerra Mundial, a França e a Grã-Bretanha avançaram com a aplicação do seu plano de tomada do Médio Oriente árabe” (100 anos do acordo Sykes-Picot: um século de ingerência e prepotência ocidental, sítio do Movimento pelos direitos do povo Palestino e pela paz no Oriente Médio, 16/5/2016).

O acordo contribuiu para um desenvolvimento da Primeira Guerra Mundial na região. O imperialismo alemão, temendo as intenções britânicas e francesas, decidiu organizar uma operação de enfraquecimento de seus inimigos. Dessa forma, junto ao califa de Istambul, os alemães conclamaram os árabes à “guerra santa” (jiade), contra os britânicos.

Por outro lado, o imperialismo britânico organizou, em contrapartida, uma aliança com o xarife Hussein bin Ali, segunda maior autoridade religiosa depois do califa, responsável pelas cidades de Meca e Medina, que hoje encontram-se na Arábia Saudita. 

O ocorrido se deu no final de 1915 e durante os primeiros meses de 1916, quando o alto-comissário britânico no Egito, Sir Henry McMahon, estabeleceu correspondência com o xarife Hussein, emir de Meca, prometendo à sua família um papel dirigente no novo Médio Oriente. As conversas se deram, Hussein afirmou que pretendia um reino maior, para si e para os seus quatro filhos, em todas as antigas províncias árabes do Império Otomano. Para este resultado, em troca, em 1916 eles encabeçaram uma revolta contra os turcos, através de uma espécie de guerra de guerrilha.

A traição do imperialismo

“A Grã-Bretanha está pronta a reconhecer e apoiar a independência dos árabes dentro dos territórios nos limites e fronteiras propostos pelo xarife de Meca”, declarava McMahon (Acordo Sykes-Picot na origem do caos no Oriente Médio, Deutsche Welle, 16/5/2016).

“Estou confiante de que as grandes potências colocarão o bem-estar do povo árabe acima de seus próprios interesses materiais”, comentou Faiçal bin Hussein, filho do xarife (idem).

De acordo com o então ministro do Exterior britânico, George Curzon, a questão central era ocultar os interesses econômicos de seu país atrás de uma “fachada árabe”, “governada e administrada sob direção britânica, controlada por um maometano nato e, se possível, por uma equipe árabe” (idem).

Contudo, as negociações secretas entre Mark Sykes e George Picot, estabeleceram em maio de 1916 a chamada linha Sykes-Picot, dividindo a região entre controle britânico e francês, da qual os Hachemitas (família de Hussein) foram meramente informados em termos gerais. A divisão dessa maneira ignorava por completo os acordos feitos entre o imperialismo inglês com Hussein, que destacou importantes tropas na região para garantir os interesses de seus supostos aliados (idem).

“‘Os britânicos ajudaram os árabes da região a se rebelarem contra o domínio otomano, mas durante a guerra eles fizeram promessas a diferentes grupos’, disse Priya Satia, historiadora especialista em Império Britânico e professora da Universidade de Stanford, à BBC Mundo.

“Eles prometeram aos árabes que poderiam governar independentemente a Palestina, prometeram aos franceses que dividiriam alguns dos territórios com eles e há ainda a promessa que fizeram com a Declaração de Balfour”, afirmou (Oriente Médio: Como França e Reino Unido dividiram a região entre si há um século, BBC News Brasil, 26/4/2021).

O fato veio a público em novembro de 1917, durante a revolução russa, quando os bolcheviques, liderados por Vladimir Lênin, tornaram públicos diversos acordos secretos, onde entre eles estava o acordo Sykes-Picot. O fato tornou-se público pela primeira vez e revela de maneira clara as enormes divergências entre o que fora prometido a Hussein em suas correspondências com McMahon e o que fora acordado de maneira secreta entre ingleses e franceses.

O caso desenvolveu uma profunda crise na região, os conflitos já se espalhavam em território palestino e levariam poucos anos depois a importantes levantes, como em 1922, contra a presença inglesa e sionista na região.

Em resposta aos acontecimentos, o imperialismo inglês, que possuía de fato o poder na Palestina, propôs alterar a proposta de governar em conjunto com os franceses, conforme colocavam os acordos secretos. 

Sob esta base, impulsionado pelo imperialismo inglês, que financiou a imigração de judeus da Europa, sobretudo oriental, para a Palestina, é criada a Declaração Balfour, no dia 2 de novembro de 1917, estabelecendo a criação de um Estado judeu, passando por cima do controle do povo palestino, mais uma vez, de seu próprio território.

“Escritório do Exterior

2 de novembro, 1917

Caro Lorde Rothschild,

Eu tenho muito prazer em lhe transmitir, sob o nome do Governo de Sua Majestade, a seguinte declaração de simpatia com as aspirações do Sionismo Judeu que foram enviadas a, e aprovadas pelo, Gabinete

O Governo de Sua Majestade vê favoravelmente o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu, e usará seus melhores meios para facilitar a conquista deste objetivo, estando claramente compreendido que nada deverá ser feito que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não-judaicas existentes na Palestina ou os direitos e status político garantidos aos judeus em qualquer outro país.

Eu ficaria agradecido se levasse esta declaração ao conhecimento da Federação Sionista.

Seu,

Arthur James Balfour” (Balfour Declaration: Text of the Declaration, Jewish Virtual Library).

“A correspondência Hussein-McMahon associava o futuro da Palestina a um reino árabe hachemita; o Acordo Sykes-Picot propunha colocar a Palestina sob o domínio colonial anglo-francês; e a Declaração Balfour considerava-a como um futuro Estado judaico. Apesar da sua funda incidência no futuro da Palestina, estes três processos decorreram sem qualquer participação dos Palestinos” (100 anos do acordo Sykes-Picot: um século de ingerência e prepotência ocidental, sítio do Movimento pelos direitos do povo palestino e pela paz no Oriente Médio, 16/5/2016).

Com o fim da guerra, a realização das conferências de Deauville e de San Remo definiram os ajustes na linha Sykes-Picot. Dessa forma ficou estabelecida a divisão entre ingleses e franceses, como também a imposição das novas fronteiras e sistemas de governo.

O recorte do Oriente Médio e a criação do Estado sionista

A Sociedade das Nações assim atribuiu à França o mandato da Arábia Saudita e Líbano e à Grã-Bretanha o mandato da Mesopotâmia (Iraque) e o mandato da Palestina. Já as possessões otomanas na Península Arábica converteram-se no reino chamado Hejaz, que viria a ser anexado pelo Sultanato de Nedj (atual Arábia Saudita), e no reino do Iêmen. Sobre as possessões do Império na costa ocidental do Golfo Pérsico, as mesmas foram anexadas pela Arábia Saudita ou permaneceram protetorados britânicos (Cuaite, Barém e Qatar) e vieram a tornar-se os Estados árabes do Golfo.

Nesse sentido, a importância dos pactos firmados durante a Conferência de Paris foi abrangente, resultando na fundação da Síria e do Iraque, como também em 1923 na criação do Líbano.

Em Paris, Faiçal declarou a respeito da fundação de um Estado judeu: “eu asseguro que nós, árabes, não guardamos qualquer ressentimento étnico ou religioso contra os judeus, como o que infelizmente predomina em outras partes do mundo.” No entanto, suas declarações entraram mais uma vez para a história como um reflexo da subserviência ao imperialismo.

“‘As consequências do que aconteceu em San Remo são profundas e não apenas pelo que aconteceu naquela conferência. Por muitos anos a França e a Grã-Bretanha tomaram decisões que acabaram criando Estados sem nações, porque as nações não tinham o direito de se expressar’, afirmou à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) Jean-Paul Chagnollaud, professor de ciência política da Universidade de Cergy-Pontoise e especialista em Oriente Médio.

“‘Muitos dos problemas que vemos hoje na Palestina, no Líbano, no Iraque ou na Síria estão obviamente ligados ao que aconteceu em 1920 e depois em 1921, 1922 e 1923’, diz Chagnollaud, que é também diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos do Mediterrâneo e o Oriente Médio (iReMMO)” (Oriente Médio: Como França e Reino Unido dividiram a região entre entre si há um século, BBC News Brasil, 26/4/2021).

Em San Remo, os países imperialistas definiram três princípios para criar as novas fronteiras.

O primeiro deles defendia uma criação basicamente ligada à Bíblia. Lloyd George utilizou o Atlas da Geografia Histórica da Terra Santa, publicado em 1915 pelo reverendo escocês George Adam Smith, para definir os novos limites da região (idem).

“‘Um segundo princípio era que os franceses não queriam que seu mandato tivesse colônias judaicas’, afirma Henry Laurens, do Collège de France.

“É assim que o pequeno território entre a Síria e o Líbano, chamado Galileia, acabou sendo incluído no mandato britânico da Palestina e não no mandato francês da Síria, porque ali havia assentamentos judeus” (idem).

E, além disso, “o Reino Unido queria que houvesse continuidade territorial entre seus mandatos palestino e iraquiano.

“Isso explica o tipo de corredor que vemos hoje que vai da Jordânia ao Iraque, se virmos em um mapa, o que significa que a Síria não tem uma fronteira comum com a Arábia Saudita”, explica Laurens (idem).

“É por isso que as fronteiras que foram estabelecidas nos anos 20 do século passado perduram até hoje: as elites políticas de Jerusalém assumiram o controle da Palestina, as elites políticas de Beirute assumiram o controle do Líbano, as de Damasco assumiram o controle da Síria, e Bagdá assumiu o controle do Iraque” (idem).

“Os britânicos aceitaram o mandato francês porque simplesmente perceberam que não tinham os meios financeiros para controlar todo o Oriente Médio” (idem).

Com a carta para um “lar judeu”, a estruturação de “Israel” foi colocada na ordem do dia e passou a constituir um permanente foco de tensão no Médio Oriente, de que são exemplo as guerras de 1948, 1956, 1967 e 1973. Assim como os conflitos anteriores, como em 1922, 1929, entre outros provocados pela insatistafação da população arábe contra o imperialismo e a formação do Estado sionista. Como resultado, “Israel” continua a ocupar áreas do Líbano e da Síria, levando a milhões de refugiados palestinos que permanecem dispersos pelos países da região.

O resultado final de tais ações na região foi a série de guerras e conflitos que perdura até hoje: o genocídio palestino, a guerra civil libanesa de 1975 a 1990, a Guerra do Golfo, entre diversas outras guerras regionais com a participação direta do imperialismo, que com o passar do tempo passou a ter sobretudo a dominação dos Estados Unidos com o fim da Segunda Guerra Mundial e a formação do Estado sionista de “Israel”.

Grande parte destas revoltas e guerras são originadas graças à política assumida pelo imperialismo no término da Primeira Guerra Mundial e todas elas são oriundas da intervenção imperialista na região. 

“Os israelenses também ficaram muito felizes com a Declaração de Balfour e o estabelecimento de uma ‘casa nacional’ na Palestina. Acho que eles foram, de fato, os grandes vencedores”, declarou Laurens.

“O acordo de Sykes-Picot, portanto, traiu promessas de liberdade feitas aos árabes pelos britânicos em troca de seu apoio na luta contra o Império Otomano, que dominava o chamado mundo árabe” (Sykes-Picot: o acordo secreto que está na raiz de conflitos no Oriente Médio, BBC News Brasil, 18/5/2016).

“A ideia inicial era que israelenses e palestinos tivessem o direito a um Estado, segundo o princípio da autodeterminação dos povos. Os palestinos, no entanto, perderam território paulatinamente e não contam sequer com um território contíguo” (idem).

Curiosamente, o conselheiro de política externa dos Estados Unidos, Edward House, afirmou na época: “‘Tudo é ruim e eu avisei Balfour sobre isso. Estão gerando um criadouro para guerras no futuro.’ Ele se referia à Declaração de Balfour, uma carta escrita pelo secretário do exterior britânico a um líder da comunidade judaica no Reino Unido, comunicando o apoio britânico a criação de um Estado judeu na Palestina, no caso de derrota do Império Otomano e vitória na Primeira Guerra Mundial” (idem).

Como resultado, os conflitos atuais na região levam também a uma tentativa de pôr um fim ao tratado estabelecido nos anos 20. “Não sou apenas eu dizendo, o fato é que o Sykes-Picot falhou, está acabado”, afirmou à BBC o presidente da região iraquiana autônoma do Curdistão, Massoud Barzani.

“Passamos por experiências amargas desde a formação do Estado iraquiano depois da Primeira Guerra Mundial. Tentamos preservar a unidade do Iraque, mas não somos responsáveis por sua fragmentação – são os outros que dividiram o país”, continuou.

“Sykes-Picot está acabado, isso é certo, mas tudo está no ar agora, e ainda demorará para o resultado disso ficar claro”, declarou também o líder druso libanês Ualide Jumblatt.

Um Estado fantoche

Todo o processo foi resultado de uma operação organizada pelo imperialismo com o objetivo de controlar política e economicamente a região. O fato é que sobretudo o território palestino, com acesso ao Mar Vemelho e ao Mediterrâneo, torna-se um dos pontos mais importantes do controle geográfico de todo o mundo. Por esta região ocorre o principal tráfego de mercadorias mundiais, saindo do continente asiático em direção à Europa. O mesmo se dá na luta pelo controle do Canal de Suez no Egito.

Inclusive, a abertura do Canal de Suez em 1869 tornou a área extremamente atraente para os interesses do imperialismo, pois ali se abria a possibilidade de controlar uma rota que reduzia consideravelmente o tempo de navegação para a Índia. O caso mais tarde levaria à guerra do imperialismo contra o Egito.

Outro ponto fundamental foi a descoberta da “rota do petróleo”, tendo no Oriente Médio um dos principais pontos de extração de petróleo de todo o mundo. Países como Catar, Arábia Saudita, entre outros, têm atualmente como centro de suas economias a exploração do petróleo. Além disso, o gás também é recurso encontrado em grande escala em terras palestinas, sobretudo onde hoje localiza-se a Faixa de Gaza.

Todos estes fatores são considerados pelo imperialismo um problema fundamental para seu controle da economia mundial e foram base de toda a divisão arbitrária do Oriente Médio e sobretudo da formação do Estado de “Israel”.

“A luta contra o sionismo transcende em grande parte as fronteiras da nação árabe […] A participação ativa dos europeus na luta pela libertação, como se pode entender facilmente, é uma realidade perigosa demais para os sionistas, que não podem aceitar que a imprensa se aproprie das notícias. Israel, um pilar do imperialismo anglo-saxão, é uma ameaça permanente para todos os povos que fazem fronteira com o Mediterrâneo. Aceitar sua existência significa ratificar a política dos blocos, cujo interesse está em dividir para continuar a governar. O desaparecimento de Israel privará a 6ª Frota dos EUA de seu principal pretexto para cruzar o Mediterrâneo […] A questão palestina e a hipoteca sionista sobre a Europa são um único problema, que só pode ser resolvido com o alinhamento da organização sionista mundial” Afirmou Gilles Munier (C. Mutti, Introduzione a R. Coudroy, Ho vissuto la resistenza palestinese, Passaggio al Bosco, 2017).

Em meio a este cenário o imperialismo viu a necessidade de possuir um controle real na região. A colonização inglesa não era suficiente, era necessário um Estado local, que representasse diretamente os interesses do imperialismo. 

Um dos casos que refletem este problema é a declaração do atual presidente dos EUA, Joseph R. Biden, de que “se Israel não existisse, os EUA teriam que inventar um para proteger os interesses dos EUA”.

Assim, a formação através de décadas do Estado sionista de “Israel”, um enclave do imperialismo no Oriente Médio, foi a solução encontrada para continuar e avançar no controle da região.

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