A música popular latino-americana destaca-se como uma das mais criativas do mundo. Essa riqueza está certamente ligada à diversidade cultural da formação social do continente. Negros africanos e europeus que se estabeleceram no continente e misturaram sua cultura com a dos índios que aqui viviam. Talvez pela espontaneidade da música popular, foi justamente nesse campo das artes em que essa mistura tenha sido tão bem expressa.
A partir da segunda metade do século XX, muitos artistas começaram a explorar de maneira mais consciente essa mistura, acrescentando elementos modernos à música folclórica e popular de seus países. Criou-se, então, um movimento comum nos países latino-americanos, a “Nova Canção”. Embora tenha aparecido em quase todo o continente, foi no Chile (Nueva Cancion), na Argentina (Nuevo Cancionero), em Cuba (Nueva Trova) e no Brasil (MPB) que esse movimento mostrou mais força.
Na Argentina, um nome se destaca como percursor e, ao mesmo tempo, representante desse movimento chamado “Nuevo Cancionero”, Atahualpa Yupanqui.
Nascido Héctor Roberto Chavero Aramburo em 31 de janeiro de 1908, em Pergamino, na província de Buenos Aires, Argentina, Yupanqui cresceu numa família de origens humildes, entre o campo e a cidade, com heranças criolas e indígenas. Filho de pai quechua e mãe basca, desde cedo carregava nas veias essa diversidade, a América indígena e a Europa rural, o campo argentino e o exílio dos que nascem à margem da cidade. Essas origens certamente ajudaram a moldar sua sensibilidade artística.
Na infância, mudou-se com a família para o norte da província de Tucumán, onde teve seu primeiro contato com o mundo andino. Ali, entre montanhas, ritos camponeses e a fala dos antigos, ouviu os primeiros sons que marcariam sua música: os ritmos ancestrais da baguala, da zamba e da chacarera, tocados por camponeses e pastores. Yupanqui muitas vezes recordava que sua verdadeira escola foi o convívio com os humildes, os índios, os tropeiros e os silenciosos.
Aos seis anos começou a estudar violino, mas logo se apaixonou pelo violão, instrumento que aprendeu com músicos do interior e que dominou de forma pessoal e intuitiva. Sua juventude foi marcada por uma curiosidade voraz: lia história, filosofia, poesia, e estudava com afinco a cultura popular. Ao mesmo tempo, envolveu-se em atividades políticas e culturais.
Na década de 1930, iniciou uma série de viagens pelo interior argentino, não como turista, mas como andarilho e aprendiz. Dormia em ranchos, ouvia os anciãos, anotava versos, observava as feições da terra e do povo. Era o que ele chamava de “busca do sentido profundo das coisas simples”. Nesse período, começou a usar o nome Atahualpa Yupanqui, em homenagem aos grandes líderes incas.
Sua juventude foi, assim, uma lenta maturação do artista e do homem. Como ele mesmo diria em entrevista:
“No hay mayor maestro que el camino. El camino es el que enseña.”
A escolha do nome artístico, homenagem aos dois grandes líderes do império Inca, Atahualpa e Túpac Yupanqui mostra bem o objetivo do movimento da Nova Canção em todos os lugares: a volta às raízes culturais do povo. Na Argentina, essas raízes estão mais ligadas principalmente às tradições indígenas.
Na década de 1930, Atahualpa Yupanqui começou a transformar os registros de sua vivência rural em composições autorais que misturavam poesia, crítica social e ritmos populares argentinos. Suas primeiras aparições públicas como músico ocorreram em rádios locais e eventos culturais em Buenos Aires.
Foi também nessa época que se aprofundou seu envolvimento político. Inspirado pelas lutas populares latino-americanas, Yupanqui começou a compor canções que refletiam a vida do trabalhador rural, do indígena, do exilado e do pobre. Sua arte foi sendo cada vez mais marcada pela denúncia social e política, como nas canções “El arriero” e “Trabajo, quiero trabajo”.
Em 1935, publicou seu primeiro livro, “Piedra sola”, misto de poesia e relato de viagem. Esse texto é fundamental para entender seu estilo literário: seco, direto, mas profundamente lírico.
Durante a década de 1940, sua fama cresceu com a gravação de canções marcantes e com suas apresentações em rádios nacionais. Porém, sua militância o colocaria na mira do governo de Juan Domingo Perón. Apesar de muitos artistas populares se aproximarem do peronismo, Yupanqui manteve uma posição crítica, associando-se ao Partido Comunista Argentino. Como resultado, passou a sofrer censura, vigilância e restrições.
Foi preso em 1949, e várias de suas canções foram proibidas nas rádios. Para muitos, esse período marca a transição de Yupanqui para uma figura mítica e perseguida — símbolo da arte popular independente. Em entrevista posterior, ele diria:
“No me encarcelaron por mis canciones: me encarcelaron por lo que mis canciones despertaban.”
Apesar disso, ele continuou compondo e se apresentando em espaços menores, registrando uma série de canções que se tornariam clássicos da música popular argentina, como “Camino del indio”, “El payador perseguido” e “Milonga del solitario”. A qualidade poética dessas obras e sua fidelidade aos temas do povo rural consolidaram sua imagem como cronista dos do povo pobre e trabalhador.
Militância, exílio e reconhecimento internacional
Yupanqui filiou-se ao Partido Comunista Argentino em 1945, junto com um grupo de intelectuais. Isso lhe rendeu perseguições políticas, censura e prisão durante os governos de Juan Domingos Perón.
O início dos anos 1950 marcou uma virada decisiva na trajetória de Atahualpa Yupanqui. Perseguido pela censura argentina e pelas forças de repressão estatal, viu-se praticamente impedido de atuar em seu próprio país. Com a firmeza silenciosa que lhe era própria, tomou então o caminho do exílio: primeiro o Uruguai, depois o Chile, e, em seguida, a França, onde se radicaria por boa parte das duas décadas seguintes.
Em 1953, ele rompe com o partido, mas sem abandonar suas posições de esquerda. Foi em Paris, em 1950, que encontrou um solo fértil para sua arte. Édith Piaf, um dos maiores nomes da canção francesa, ouviu-o em uma apresentação e ficou imediatamente comovida com sua música. Encantada, ela o convidou para se apresentar no Olympia de Paris, templo da música internacional. Esse gesto abriria as portas da Europa para Yupanqui, que passou a se apresentar com sucesso na França, na Alemanha, na Suíça, na União Soviética e em outros países do Leste Europeu.
Na França, lançou álbuns importantes, como “Minero soy”, “Canto del viento” e “Le chant de la terre”. Suas composições, “Los ejes de mi carreta”, “Zamba del grillo”, “Guitarra, dímelo tú”, ganhavam novo público sem perder a profundidade. Era como se sua voz, mesmo falando da Puna andina ou da solidão do homem do campo argentino, fosse universal. Em suas palavras:
“La tierra es una sola, y el dolor del hombre también. Sólo cambia el idioma con que se nombra.”
Na década de 1960, já consagrado, começou a ser redescoberto pelos jovens artistas latino-americanos, sendo referência direta para o surgimento do Nuevo Cancionero Argentino, movimento que reivindicava uma canção popular latino-americana com compromisso político, raízes culturais e inovação.
Discreto e um tanto cético com a exposição pública, Yupanqui jamais se deixou incorporar oficialmente ao Nuevo Cancionero, mas era reverenciado como seu “pai espiritual”. Sua influência estava presente na escolha dos temas, no modo de cantar e na valorização das culturas indígenas e camponesas.
Como escreveu o poeta chileno Pablo Neruda:
“Atahualpa Yupanqui canta como se fosse o silêncio quem lhe ditasse os versos.”
Essa consagração internacional, no entanto, não apagaria o desejo de regressar. Em meados dos anos 1960, com a queda do peronismo e a mudança dos ventos políticos, Yupanqui retornaria com mais força à Argentina, onde passaria a ser homenageado por novos públicos e consolidaria seu lugar como um dos fundadores da canção latino-americana de protesto.
Durante as décadas de 1970 e 1980, mesmo com os horrores da ditadura militar argentina (1976–1983), sua obra seguiu circulando, ora de forma clandestina, ora protegida pelo prestígio internacional. Muitos músicos do exílio cantavam suas composições como protesto e homenagem à cultura popular.
No final dos anos 1980, já idoso, Yupanqui começou a receber reconhecimentos oficiais que antes lhe foram negados. Em 1985, a Unesco o nomeou como “Tesouro Cultural da Humanidade”. Pouco antes, em 1983, foi finalmente reconhecido com o Prêmio Konex de Platina, na categoria de compositor popular da década. Em 1989, foi convidado especial do Festival de Cosquín, onde fez uma de suas últimas aparições públicas.
Vivendo em Cerro Colorado, província de Córdoba, Yupanqui passou os últimos anos entre a reclusão voluntária e breves aparições públicas. Continuava a escrever, receber visitantes e tocar seu violão. Sua relação com o instrumento era quase mística, como expressa no poema “Guitarra, dímelo tú”:
“Guitarra, dímelo tú / qué pena arrastro en el alma / qué cosas que me lastiman / que yo mismo no las sé.”
Um movimento moderno de retorno às raízes
A música popular da América Latina no século XX foi palco de um profundo processo de transformação, em que formas tradicionais e ritmos regionais e folclóricos foram misturados com ideias modernas de arte. A Argentina desempenhou um papel central, tanto pela riqueza de seu folclore quanto pela formação de movimentos artísticos que buscaram articular tradição e vanguarda, cultura popular e consciência social.
Nas primeiras décadas do século XX, a música popular argentina era marcada pela diversidade regional: as zambas, chacareras, vidalas e bagualas do noroeste conviviam com as milongas e estilos pampeanos do sul, enquanto o tango, nascido nos subúrbios de Buenos Aires, ganhava projeção nacional e internacional. Nesse sentido, campo e cidade, a cultura europeia, negra e indígena, conviviam e se misturavam.
O rádio e o disco — grandes veículos de difusão na primeira metade do século — popularizaram essa produção. No entanto, com o tempo, essas canções começaram a ser padronizadas para se adaptarem às exigências do mercado fonográfico. Essa constatação foi feita pelos artistas da Nova Canção em todos os países da América Latina. Era preciso retomar as tradições populares genuínas.
Ao tomar consciência disso, os novos artistas acabaram por criar uma nova música que buscava essas tradições e, ao mesmo tempo, introduzia novos elementos. Essa postura, que coincidiu com um crescimento do nacionalismo nesses países, um nacionalismo anti-imperialista, acabou por produzir também uma canção politizada. Esse é um dos motivos que explicam que a música de protesto na América Latina seja talvez a mais importante do mundo.
A partir dos anos 1940 e 1950, com artistas como Atahualpa Yupanqui, a música popular começou a assumir um papel mais ativo na denúncia social e na valorização da cultura camponesa e indígena. Yupanqui, perseguido por suas ideias e afastado dos grandes meios de comunicação, construiu uma obra austera, poética e política — um canto da terra e da resistência, que influenciaria toda uma geração posterior.
Na mesma época, em outros países da América Latina, movimentos semelhantes ganhavam forma: no Chile, com Violeta Parra; em Cuba, com Carlos Puebla e a música trovadoresca; e no Brasil, com a bossa nova e os primeiros sinais da música de protesto.
O Nuevo Cancionero Argentino
Em 1963, na cidade de Mendoza, um grupo de músicos, poetas e intelectuais lançou o Manifesto do Nuevo Cancionero, propondo uma nova estética para a música popular argentina. Liderado por Mercedes Sosa, Armando Tejada Gómez e Oscar Matus, o movimento propunha romper com o folclore comercializado e conservador, construindo uma canção livre de clichês e ativamente engajada com o povo e seu tempo.
O Nuevo Cancionero defendia uma música que mantivesse os vínculos com as raízes populares, mas aberta à experimentação poética, socialmente crítica e esteticamente renovada. Seu lema era:
“Un arte comprometido con el hombre, no con el mercado”.
O movimento argentino faz parte da chamada Nova Canção Latino-Americana, que uniu artistas do Chile, Uruguai, Bolívia, Peru, Cuba e Brasil em torno de temas comuns: denúncia da desigualdade, luta contra as ditaduras e a busca por uma genuína identidade latino-americana.
O Nuevo Cancionero não somente transformou o repertório da música argentina, mas redefiniu o papel do cantor e compositor como a voz do povo. É nesse sentido que a influência de Atahualpa Yupanqui foi tão decisiva.
Embora Yupanqui não tenha participado formalmente do lançamento do Nuevo Cancionero Argentino, em 1963, sua presença foi essencial para a formação daquele movimento. Mais do que um precursor, Yupanqui tornou-se uma referência para os artistas que buscavam construir uma nova música popular: profundamente enraizada na tradição, mas também moderna.
Sua vida e obra foram um modelo de coerência entre arte e pensamento, entre compromisso político e linguagem poética. Para os fundadores do Nuevo Cancionero, Yupanqui representava o que havia de mais autêntico na arte popular: alguém que cantava seu povo e sua terra e denunciava as injustiças.
A influência de Yupanqui se manifesta em muitos pontos. A postura política diante das perseguições, a recusa do oportunismo e o compromisso com os humildes eram um exemplo para a nova geração. Além disso, sua estética serviu de contraponto ao que havia se tornado a música popular, com mero apelo comercial, marcado por festivais decorativos e por um exotismo superficial das tradições regionais. Yupanqui era o modelo para a nova geração, que buscava se afastar dessa arte que considerava excessivamente comercial.
A linguagem intimista e comprometida Yupanqui influenciou diretamente os cânones do Nuevo Cancionero. O movimento reivindicava uma canção nova, não no sentido de uma ruptura total com as tradições e o folclore, mas sim uma reinterpretação crítica dessa cultura popular. E foi exatamente isso que Yupanqui vinha fazendo desde os anos 1940.
A cantora Mercedes Sosa reconheceu publicamente essa filiação. Em várias entrevistas, referiu-se a Yupanqui como “maestro” e “pai espiritual” da música engajada. Seu disco Mercedes Sosa canta a Yupanqui (1983) é um marco dessa relação: uma ponte entre gerações, na qual a potência vocal de Mercedes expande a densidade poética de Atahualpa.
Outros artistas do Nuevo Cancionero, como Tejada Gómez, também manifestaram diretamente sua influência do mestre. A ideia de uma “poética da terra”, tão presente no movimento, deve muito à visão yupanquiana de que a cultura não é um adorno, mas uma expressão viva da luta cotidiana.
Yupanqui construiu uma obra musical singular no continente. Como violonista, desenvolveu um estilo próprio, que combinava técnica refinada, ritmos regionais (zamba, chacarera, milonga) e um uso expressivo do silêncio. Seu toque é limpo, profundo, narrativo: o violão em Yupanqui não acompanha simplesmente o canto, ele parece também cantar.
Seu estilo musical se baseia principalmente no folclore andino e pampeano, com forte presença de ritmos como zamba, chacarera e milonga campera. O uso do violão é central em sua obra, com uma técnica refinada que influenciou gerações de músicos.
Yupanqui não foi apenas um músico, foi também um poeta e pensador rural, que falava com profunda sensibilidade sobre a solidão, o silêncio, a terra e a dignidade dos humildes.
A voz, grave, contida, quase falada, passa uma ideia menos de canto e mais como alguém que está recitando um poema. Sua poética se vale de metáforas da natureza, figuras da solidão e imagens da vida rural. Como escreveu:
“Hay una cosa que no se puede negar: yo soy tierra. Yo vengo de la tierra.”
Suas composições, aparentemente simples, revelam camadas de crítica, lirismo e reflexão. Entre as mais marcantes:
“Los ejes de mi carreta”: uma ode à liberdade do homem solitário que prefere escutar o ranger da carroça a viver em silêncio imposto.
- “Porque no engraso los ejes / me llaman abandonao / si a mí me gusta que suenen / pa’ que los quiero engrasaos.”
“El arriero”: metáfora social sobre o tropeiro que conduz gado alheio, expressão da injustiça e do trabalho alienado.
- “Las penas son de nosotros / las vaquitas son ajenas.”
“Camino del indio”: composição que retrata com lirismo e respeito o percurso cotidiano dos índios.
“La añera”, “Zamba del grillo”, “Luna tucumana”: peças que fundem melodia e paisagem, construindo uma poética da Argentina ‘invisível’.
Yupanqui também foi escritor. Em obras como El canto del viento e Guitarra, desenvolveu sua filosofia do artista popular: aquele que escuta antes de cantar, que caminha antes de falar, que serve ao povo.
A produção artística de Yupanqui é extensa e diversa. Compôs centenas de canções, publicou livros de ensaios, poemas e memórias, e gravou dezenas de discos. Sua obra pode ser dividida em três eixos principais: o repertório musical, a poesia a e a militância cultural.
Yupanqui faleceu em 23 de maio de 1992, aos 84 anos, em Nimes, na França. Seus restos mortais foram transladados e sepultados na Argentina, como pediu, em sua amada Cerro Colorado, onde hoje funciona a Casa Museo Atahualpa Yupanqui.
O artista dizia que “a arte popular não é para entreter, é para revelar”. Sua trajetória confirma essa premissa: caminhou ao lado dos que não têm voz, cantou o que não se vê, escreveu o que se escuta com a alma.
Seu legado não se encerrou com sua morte. Sua obra, que abarca centenas de canções, livros, poemas e pensamentos, influenciou profundamente o Novo Cancioneiro, a Nueva Canción Chilena e a canção de protesto latino-americana.
Como afirmou Mercedes Sosa:
“Yupanqui nos enseñó que cantar no es adornar la voz, sino decir una verdad. Con él, la guitarra se volvió una pluma, y la canción una manera de resistir.”