15.08.2025

O jovem Engels: de hegeliano a comunista

Vida e obra de um revolucionário

Juca Simonard

A trajetória de Friedrich Engels, oriundo de uma família abastada alemã, até a fundação do socialismo científico ao lado de Karl Marx

Friedrich Engels nasceu em 28 de novembro de 1820 e morreu em 5 de agosto de 1895. Em seus quase 75 anos de vida, tornou-se uma das mais relevantes figuras da História. Indubitavelmente, ao lado de Karl Marx, o mais importante teórico do movimento operário mundial. Engels foi cofundador do socialismo científico, o marxismo, e um materialista em seu sentido pleno, isto é, um ferrenho inimigo das doutrinas idealistas e metafísicas. Por isso, é frequentemente relegado a segundo plano pelos pretensos marxistas da academia, que o relegam a um segundo plano em suas “análises” da literatura marxista.

Além de fundar, com Marx, as bases para o surgimento do movimento operário moderno, Engels foi um militante dedicado, um estrategista revolucionário e um verdadeiro inimigo do “socialismo de cátedra” — ou seja, o “marxismo” acadêmico. O Anti-Dühring (1878), obra que polemiza com as ideias do filósofo alemão Karl Eugen Dühring, um dos primeiros revisionistas do marxismo, é, nesse sentido, um verdadeiro manual materialista: defende não apenas a política revolucionária da classe operária, mas também exprime uma visão científica abrangente sobre o mundo natural.

Engels desenvolveu essa visão de conjunto sobre o mundo material em outras obras, como Dialética da Natureza (1883), Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884), Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã (1886), O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem (1876), entre outros. Sua primeira grande obra nesse campo foi A Ideologia Alemã, escrita com Marx em 1845, mas publicada postumamente. 

Oriundo de uma família burguesa, Engels foi o principal aliado de Marx na luta revolucionária do século XIX — tanto na Liga dos Comunistas, durante a revolução de 1848-1850, quanto na Associação Internacional dos Trabalhadores (a Primeira Internacional, 1864-1876). Desempenhou, ainda, papel determinante na estruturação do Partido Social-Democrata Alemão, um dos maiores partidos operários da História, bem como na organização de outros partidos no final do século XIX.

Sua principal realização, no entanto, foi a formulação, ao lado de Marx, de uma doutrina científica de luta pela emancipação da classe operária. Não apenas sua correspondência com o autor d’O Capital (1867) foi essencial para a elaboração da obra magna do marxismo, mas também assumiu, após a morte de seu parceiro, a tarefa crucial de editar e publicar os dois últimos volumes da obra.

Em determinado momento, ao refletir sobre sua relação com Marx, Engels descreveu seu papel como aquele que “estava destinado a tocar o segundo violino”. (Friedrich Engels: Uma Biografia, Gustav Meyer, 1936)

Reduzir Engels ao “segundo violino”, contudo, seria um equívoco grosseiro. Ambos chegaram às mesmas conclusões por caminhos distintos antes de iniciarem uma colaboração que perduraria até 1883. Engels era um pensador original — sua obra não é em nenhum aspecto secundária à de Marx. Isso se deve a dois fatores fundamentais: primeiro, porque grande parte de sua produção foi conjunta; segundo, porque seus escritos individuais constituem pilares da literatura marxista. Marx e Engels são complementares, tal que enquanto Marx se concentrava em certos aspectos da luta política, Engels abordava outros — inversão de papéis que não alteraria a coerência do socialismo científico.

Essa perspectiva explica por que as críticas acadêmicas a Engels — motivadas por sua defesa intransigente do caráter científico do marxismo, em oposição direta às tendências relativistas universitárias — representam, na verdade, um ataque ao marxismo em sua essência. Partem daqueles para quem o “marxismo” não passa de um rótulo, usado para discursos vazios de autopromoção na burocracia universitária. Desse ambiente surge o ecletismo desses pretensos marxistas, que não hesitam em destacar (quando não distorcer) os “erros” de Marx e Engels para se adequarem a modas intelectuais burguesas. É significativo que reproduzam exatamente o que Engels combateu no final do século XIX.

Sobra sua importância, o testemunho de Lênin (discípulo mais consequente de Marx e Engels, líder da Revolução Russa de 1917) ilumina essa centralidade:

Depois de seu amigo Karl Marx (que morreu em 1883), Engels foi o maior estudioso e mestre do proletariado moderno em todo o mundo civilizado. Desde que o destino uniu Karl Marx e Friedrich Engels, os dois amigos dedicaram sua vida a uma causa comum. Portanto, para entender o que Engels fez pelo proletariado, é preciso compreender a importância dos ensinamentos e da obra de Marx para o desenvolvimento do movimento operário contemporâneo.

“Marx e Engels foram os primeiros a demonstrar que a classe trabalhadora e suas reivindicações são uma consequência inevitável do sistema econômico atual, que, junto com a burguesia, cria e organiza o proletariado. Eles mostraram que não são os esforços bem-intencionados de indivíduos nobres, mas a luta de classes do proletariado organizado que libertará a humanidade dos males que hoje a oprimem. Em seus trabalhos científicos, Marx e Engels foram os primeiros a explicar que o socialismo não é uma invenção de sonhadores, mas o objetivo final e o resultado necessário do desenvolvimento das forças produtivas na sociedade moderna.

“Toda a história registrada até hoje tem sido a história da luta de classes, da sucessão do domínio e da vitória de certas classes sociais sobre outras. E isso continuará até que as bases da luta de classes e da dominação de classe — a propriedade privada e a produção social anárquica — desapareçam. Os interesses do proletariado exigem a destruição dessas bases, e, por isso, a luta de classes consciente dos trabalhadores organizados deve ser dirigida contra elas. E toda luta de classes é uma luta política.

“Essas ideias de Marx e Engels hoje são adotadas por todos os proletários que lutam por sua emancipação. Mas, nos anos 1840, quando os dois amigos participavam da literatura socialista e dos movimentos sociais da época, essas ideias eram completamente novas. Havia então muitas pessoas — talentosas ou não, honestas ou desonestas — que, absorvidas na luta pela liberdade política e contra o despotismo de reis, polícia e clero, não percebiam o antagonismo entre os interesses da burguesia e os do proletariado. Essas pessoas não admitiam a ideia de os trabalhadores agirem como uma força social independente. Por outro lado, havia muitos sonhadores, alguns geniais, que acreditavam ser suficiente convencer os governantes e as classes dominantes da injustiça da ordem social vigente para que fosse fácil estabelecer a paz e o bem-estar geral na Terra. Eles sonhavam com um socialismo sem luta. Por fim, quase todos os socialistas da época e os defensores da classe trabalhadora viam o proletariado apenas como uma chaga e observavam com horror seu crescimento junto com a indústria. Por isso, buscavam meios de frear o desenvolvimento da indústria e do proletariado, de parar a ‘roda da história’.

“Marx e Engels não compartilhavam desse temor geral pelo desenvolvimento do proletariado; pelo contrário, depositavam todas as suas esperanças em seu crescimento contínuo. Quanto maior o número de proletários, maior sua força como classe revolucionária, e mais próximo e possível se torna o socialismo. Os serviços prestados por Marx e Engels à classe trabalhadora podem ser resumidos da seguinte forma: eles ensinaram o proletariado a conhecer a si mesmo e a tomar consciência de si, substituindo os sonhos pela ciência.

“É por isso que o nome e a vida de Engels devem ser conhecidos por todo trabalhador. É por isso que nesta coletânea de artigos — cujo objetivo, como todas as nossas publicações, é despertar a consciência de classe nos operários russos — devemos apresentar um esboço da vida e da obra de Friedrich Engels, um dos dois grandes mestres do proletariado moderno.” (Friedrich Engels, V. I. Lênin, Rabotnik, nº1-2, março de 1896)

Início da vida

Friedrich Engels nasceu na cidade de Barmen, na província do Reno, parte do Reino da Prússia (atual Alemanha). Provinha de uma família abastada — seu pai era industrial têxtil e sócio da firma algodoeira Ermen & Engels em Manchester, o que lhe proporcionou contato direto com a classe operária desde jovem. A família Engels, burguesa e protestante, mantinha princípios liberais numa Alemanha ainda não unificada e que não havia passado por uma revolução burguesa.

Não por acaso, ambos os fundadores do socialismo científico emergiram justamente na Alemanha em épocas próximas: Marx em 1818 em Trier e Engels em 1820 em Barmen. Cresceram durante a Restauração pós-congresso de Viena (1815), quando a Confederação Germânica, sob hegemonia prussiana, impunha um regime policialesco através dos decretos de Carlsbad (1819) que censuravam universidades e perseguiam liberais. Engels tinha nove anos quando a Revolução de Julho de 1830 em Paris — que derrubou Carlos X — desencadeou ondas revolucionárias pela Europa: a Bélgica separou-se da Holanda, eclodiu a insurreição polonesa contra o czarismo (1830-31), e os movimentos de unificação nacional ganharam força, com destaque para Itália e Alemanha.

A Prússia, berço intelectual de ambos, personificava contradições explosivas. Primeiro, tinha o atraso político, com a manutenção de estruturas semifeudais (servidão só abolida em 1807), um parlamento medieval (Landtag) dominado por latifundiários, e censura rigorosa, enquanto França e Inglaterra consolidavam regimes constitucionais; segundo, passava por uma modernização econômica acelerada: a Zollverein (união aduaneira de 1834) estimulou a industrialização renana, criando um proletariado fabril numeroso em 1840. Terceiro, uma intensa repressão aos intelectuais. Universidades como Berlim eram centros do hegelianismo de esquerda, onde pensadores radicais se expressavam contra o Estado prussiano.

Essa tensão entre base econômica moderna e superestrutura arcaica — onde cidades como Colônia tinham máquinas a vapor, mas camponeses ainda pagavam tributos medievais — criou o terreno perfeito para o surgimento do marxismo. Enquanto a Inglaterra já tinha seu movimento cartista e a França seu socialismo utópico, coube à Alemanha, justamente por seu desenvolvimento desigual e combinado, produzir a síntese científica da luta de classes moderna. A Renânia, região mais industrializada, mas sob controle prussiano, tornou-se o laboratório onde Marx e Engels converteram a filosofia hegeliana em arma revolucionária — processo que culminaria nas Revoluções de 1848, quando o proletariado alemão entraria em cena como força política autônoma.

Até a década de 1840, porém, Marx e Engels seguiram caminhos diferentes até se aliarem e estabelecerem os princípios do marxismo.

Na juventude, Engels estudou em uma escola técnica em Barmen e no secundário em Elberfeld. Embora demonstrasse talento intelectual e artístico (escrevia poesia na adolescência), não concluiu o ensino secundário — seu pai o fez abandonar os estudos um ano antes da formatura para trabalhar nos negócios familiares. Essa interrupção, contudo, não impediu seu desenvolvimento intelectual.

A partir de 1838, trabalhou como aprendiz comercial em Bremen, onde participava ativamente da sociedade burguesa — praticando esgrima, natação, equitação e caça à raposa. Paralelamente, aproximou-se do grupo literário radical Jovem Alemanha, colaborando com o Telegraph für Deutschland.

Na primavera de 1841, Engels deixou Bremen. Viajou pela Suíça e norte da Itália antes de chegar a Berlim. Ali, alistou-se como voluntário num regimento de artilharia. Paralelamente ao serviço militar, frequentou aulas de filosofia na Universidade de Berlim. Foi quando se afastou da Jovem Alemanha e aproximou-se dos Jovens Hegelianos — a ala radical do movimento político alemão. 

Esse grupo, que contava também com Marx, era formado por intelectuais de esquerda como Bruno Bauer e Max Stirner. Defendiam a dialética hegeliana, apontando que o desenvolvimento histórico e o progresso resultam do conflito dos opostos. Essa visão levava a uma conclusão política contra o estado de coisas na Alemanha. Tinham, assim, uma interpretação revolucionária e ateia da dialética de Hegel, rejeitando a interpretação oficial conservadora. A burocracia universitária e estatal havia transformado Hegel em apologia da reacionária monarquia prussiana. Por esses motivos, foram perseguidos nos meios acadêmicos.

Entre fins de 1841 e início de 1842, Engels escreveu o Anti-Schelling. Nesta obra, criticava o idealismo de um dos principais representantes do romantismo alemão. Usando o pseudônimo Friedrich Oswald, destacou-se como acalorado polemista, especialmente na crítica à religião. Ainda em 1842, concluiu seu serviço militar.

Apesar de se relacionar com os Jovens Hegelianos em Berlim, Engels não chegou a estreitar relações com Marx. Sua primeira grande influência para o socialismo viria, na verdade, de Moses Hess — um filho de judeus ricos e promotor de causas radicais. Hess mostrou-lhe que a consequência lógica da filosofia de Hegel e da dialética era o comunismo. Também enfatizou a importância política da Inglaterra, com suas indústrias modernas e numeroso proletariado industrial. Alegando continuar sua formação no ramo comercial, Engels aproveitou os negócios da família em Manchester para se mudar para a Inglaterra e estudar a situação da classe operária.

Em Manchester, centro da revolução industrial inglesa, Engels viu de perto a realidade operária. Seu estudo das condições de vida do proletariado e seu contato com líderes do movimento cartista levaram-no a contribuir com publicações socialistas britânicas. Depois, colaborou com a Gazeta Renana, órgão oficial dos Jovens Hegelianos editado por Hess e Marx. Mais tarde, seus artigos sobre a classe operária inglesa seriam reunidos no livro A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845).

Colaboração com Marx

Engels, além do trabalho na empresa, dedicava-se a outras atividades fundamentais: escrevia sobre comunismo para jornais da Inglaterra, como The Northern Star (órgão oficial do movimento cartista) e o New Moral World de Robert Owen; relacionava-se com a classe operária e seus líderes.  Dessa forma, expunha a contradição entre a pujante indústria capitalista e a miséria extrema do proletariado. Paralelamente, nesse período estabeleceu relação duradoura com Mary Burns, operária irlandesa que seria sua companheira até falecer em 1863.

Em Berlim, a intensa perseguição política forçou o fechamento da Gazeta Renana em março de 1843, devido às críticas à monarquia prussiana. Esse episódio marcou o início do estreitamento de suas relações com Marx. Este, perseguido pela polícia prussiana, transferiu-se para Paris em 1843 para editar com Arnold Ruge os Anais Franco-Alemães, periódico radical.

Engels iniciara correspondência com Marx e enviara para a nova publicação seu Esboço para uma Crítica da Economia Política (1844). Na obra, analisava os principais fenômenos capitalistas como consequências inevitáveis da propriedade privada. Como destacou Lênin, “o contato com Engels foi, sem dúvida, um fator na decisão de Marx de estudar a economia política, ciência na qual suas obras produziram uma verdadeira revolução”. (Op. cit.)

A obra constitui o primeiro esboço do que Marx e Engels desenvolveriam. Embora contenha conceitos posteriormente superados, Marx sempre o considerou “brilhante esboço de uma economia política proletária”. Nele, desnuda as contradições do liberalismo, demonstrando como as do capitalismo conduziriam à revolução social, à abolição da propriedade privada e ao comunismo — definido como “a reconciliação do homem com a natureza e consigo mesmo”.

Karl Káutski, futuro colaborador de Engels no Partido Social-Democrata Alemão, aponta que a importância de Esboços “reside no fato de que aqui se fez a primeira tentativa de fundamentar o socialismo sobre a economia política”. “Engels era, nessa época, apenas um estudioso superficial de economia política (por exemplo, conhecia Ricardo apenas por meio de seu comentador MacCullough). Por isso, havia muitos erros nos primórdios do socialismo científico, do qual, ao lado de Marx, Engels deve ser sempre considerado fundador. A obra estava impregnada de simpatia pelas formas de socialismo que Engels conhecera na Inglaterra”. (Friedrich Engels: His Life, His Works and His Writings, 1887/1899)

Em 1844, ao retornar à Alemanha, Engels fez escala em Paris para encontrar Marx. Este, “sob a influência dos socialistas franceses e da vida francesa […] também se tornara socialista” (idem). Descobriram então sua plena convergência intelectual.

Segundo Gustav Mayer, “Marx… primeiro lhe mostrou que a política e a história são explicáveis apenas em termos de relações sociais — o princípio que se tornou a alavanca de toda a sua concepção da história… Marx deu a Engels tanto a prova final de sua suposição de que o comunismo era a continuação e a conclusão do pensamento filosófico alemão, quanto uma solução convincente do conflito aparentemente irreconciliável entre mente e massa… Engels… lhe ensinou a técnica de que precisava para o estudo dos fatos econômicos. Engels o ajudou a conhecer as realidades vivas; e Engels era o homem certo para isso, já que tinha conhecimento pessoal da indústria, do comércio e do capital, e havia estado em contato pessoal com o proletariado moderno”. (op. cit.)

Dessa colaboração nasceu A Sagrada Família (1844, publicado em Francoforte em 1845). Embora Marx tenha redigido a maior parte, a obra resulta de plena concordância teórica. Polemizando com os irmãos Bauer (Jovens Hegelianos), estabelece os alicerces do comunismo científico e do materialismo dialético revolucionário.

A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra

Em 1845, já na Alemanha, Engels publicou A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, onde descrevia: 

“Os trabalhadores mais bem pagos, especialmente aqueles em cujas famílias cada membro consegue ganhar algo, têm boa comida enquanto esse estado de coisas durar; carne diariamente e bacon e queijo no jantar. Onde os salários são menores, a carne é consumida apenas duas ou três vezes por semana, e a proporção de pão e batatas aumenta. Descendo gradualmente, encontramos o alimento de origem animal reduzido a um pequeno pedaço de bacon cortado com as batatas; mais abaixo, até mesmo isso desaparece, e restam somente pão, queijo, mingau e batatas, até que, no degrau mais baixo da escada, entre os irlandeses, as batatas constituem o único alimento… Mas tudo isso pressupõe que o trabalhador tenha trabalho. Quando não tem, está inteiramente à mercê do acaso, e come o que lhe dão, o que pode pedir ou roubar. E, se não consegue nada, simplesmente morre de fome”. (op. cit.)

Na mesma obra, alertava: “a guerra dos pobres contra os ricos, agora travada em detalhes e indiretamente, tornar-se-á direta e universal. É tarde demais para uma solução pacífica… em breve um pequeno impulso será suficiente para pôr a avalanche em movimento. Então, de fato, o grito de guerra ressoará por toda a terra: ‘Guerra aos palácios, paz às cabanas!’ — mas então será tarde demais para os ricos tomarem cuidado”. (idem)

Franz Mehring, importante marxista alemão, destacou: “o verdadeiro valor do livro reside menos nas descrições que apresenta da miséria proletária que se desenvolveu na Inglaterra como resultado do modo de produção capitalista — pois, nesse aspecto, Engels teve numerosos predecessores, como Buret, Gaskell e outros, de quem citou amplamente. E não é sequer a ardente indignação contra um sistema social que submetia as massas trabalhadoras a sofrimentos tão terríveis, nem as descrições comoventes e vívidas desses sofrimentos e a profunda e sincera simpatia pelas vítimas, que dão ao livro seu caráter especial. O aspecto mais admirável e, ao mesmo tempo, o mais notável historicamente na obra é a profundidade com que o autor, então com vinte e quatro anos, compreende o espírito do modo de produção capitalista e consegue explicar, a partir dele, não apenas a ascensão, mas também a queda da burguesia, não apenas a miséria do proletariado, mas também a sua salvação. O objetivo do livro era mostrar como a grande indústria criou a classe operária moderna como uma raça desumanizada, fisicamente arruinada, degradada intelectual e moralmente até o nível da bestialidade, e como, graças a um processo de dialética histórica cujas leis ele revela em detalhe, ela se desenvolve — e deve inevitavelmente se desenvolver — até o ponto de derrubar o seu criador. A obra afirmava que o domínio do proletariado na Inglaterra se daria como resultado da fusão do movimento operário com o socialismo”. (Karl Marx: The Story of His Life, 1918)

Kautski observa que Engels, nesta obra, rompeu com as posições de seus aliados ingleses — owenistas e cartistas. Propunha que “se unissem em um plano mais elevado: o movimento operário deveria ser a força a dar nascimento ao socialismo; e o socialismo deveria ser a meta que o movimento operário colocasse diante de si”. (op. cit.) E acrescenta:

“O socialismo utópico inglês — owenismo — nada sabia sobre o movimento operário em geral: nada sobre greves, sindicatos ou atividade política. O movimento operário, por sua vez — o cartismo — atuava inteiramente nos limites do sistema salarial existente. A liberdade plena de contrato, o direito ao sufrágio, a jornada de trabalho normal ou, eventualmente, a pequena propriedade agrícola, para a maioria dos cartistas, não eram armas para derrubar a ordem social existente, mas apenas meios de tornar mais suportável a condição das massas. Em oposição a isso, Engels declarou:

O socialismo em sua forma atual nunca poderá realizar nada pela classe trabalhadora; ele jamais se rebaixaria o suficiente para permanecer, ainda que por um instante, sobre a base do cartismo. A união desse owenismo com o cartismo, a reprodução, em forma inglesa, do comunismo francês, deve ser o próximo passo, e já começou em parte. Quando isso for alcançado, o movimento da classe trabalhadora terá se tornado, pela primeira vez, uma força na Inglaterra.

“Essa união do socialismo com o movimento operário criou o socialismo científico moderno. Em A Situação da Classe Trabalhadora as necessidades do proletariado foram, pela primeira vez, expressas de forma clara; com esse livro, o socialismo científico teve início. Ele se baseava amplamente, ainda que de modo apenas semi-consciente, no mesmo fundamento de onde, dois anos depois, brotaria o Manifesto Comunista. Essa foi a obra comum de Marx e Engels, na qual, pela primeira vez, Marx expressou claramente a concepção materialista da história. O papel histórico dos antagonismos de classe e da luta de classes é ali exposto de forma nítida.

“O próprio Engels disse, no apêndice à edição inglesa de A Situação: ‘Neste livro dá-se grande ênfase à afirmação de que o comunismo não é meramente um princípio partidário para a classe trabalhadora, mas uma teoria que significa a emancipação de toda a sociedade, incluindo a classe capitalista, da estreiteza de sua vida atual. Em teoria, isso é perfeitamente correto, mas é inútil — ou pior que isso — na prática. Enquanto a classe possuidora não apenas não sentir necessidade de emancipação, mas se opuser energicamente às tentativas da classe trabalhadora de libertar-se, a transformação social terá de ser planejada e realizada exclusivamente pela classe trabalhadora.

A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra é, no entanto, a primeira obra científica sobre socialismo, não apenas por sua posição em relação ao utopismo e ao movimento operário, mas também por seu método de apresentar a situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Essa apresentação não é, como em tantos livros filantrópicos, meramente uma coleção de misérias da classe trabalhadora, mas uma exposição das tendências históricas do tempo, especialmente do modo de produção capitalista, na medida em que se relaciona com a situação da classe trabalhadora.

“Engels via, na miséria, não somente a miséria — como faziam os socialistas de seu tempo —, mas o germe de uma forma mais elevada de sociedade, que ela trazia em seu seio. Nós, que crescemos no círculo do pensamento socialista moderno, dificilmente podemos perceber a magnitude da tarefa cumprida pelo jovem Engels, então com vinte e quatro anos, em seu livro — numa época em que as misérias da classe trabalhadora eram ou negadas, ou lamentadas, mas nunca vistas como parte do desenvolvimento histórico.

“O mundo superficial, fantasioso, literário e acadêmico do nosso tempo — que estuda o socialismo menos nas obras de seus defensores científicos do que nos relatórios policiais — nada encontrou em A Situação que lhe servisse, exceto a profecia de uma revolução inglesa iminente, e apontou com grande satisfação a não realização dessa previsão. Esses senhores esqueceram que, desde 1844, a Inglaterra passou, de fato, por uma colossal revolução, que já havia começado em 1846 com a abolição das ‘Corn Laws’ e, em 1847, com a fixação da jornada normal de trabalho para mulheres e crianças em dez horas — e que, a partir de então, concessão após concessão foi sendo feita à classe trabalhadora inglesa, de modo que, hoje, os objetivos dos cartistas estão praticamente assegurados; e eles conquistaram agora o equilíbrio do poder político. Foram eventos imprevisíveis que impediram a realização da profecia — sobretudo a luta de junho de 1848 em Paris e a descoberta dos campos de ouro da Califórnia no mesmo ano, que atraíram para além-mar elementos descontentes da Inglaterra e enfraqueceram temporariamente a força do movimento operário. Não é tão notável que essa profecia não tenha se cumprido literalmente quanto o fato de que tantas outras previsões do livro se cumpriram.

“Sobre o outro lado de A Situação, nossos literatos disseram pouco, embora fosse de especial importância para a economia política alemã. No campo teórico, a economia política alemã jamais havia realizado algo significativo. Marx explicou a razão disso em seu O Capital. Suas únicas produções dignas de menção são algumas descrições das condições de certas categorias de trabalhadores em determinadas localidades, como as fornecidas por Thun, Schnapper-Arndt, Braf, Sax, Singer, Herkner e outros. Na medida em que essas descrições possuem real importância — apresentando fatos típicos e históricos, e não meros acúmulos pedantes de detalhes desconexos —, elas se baseiam em O Capital de Marx e em A Situação da Classe Trabalhadora de Engels. Mas apenas alguns, como Sax, tiveram a coragem ou a honestidade de reconhecer isso”. (idem)

O materialismo histórico

Em Barmen, onde trabalhava para o pai, Engels testemunhou a difusão de ideias comunistas — chegando a relatar a Marx que até “o inspetor de polícia é comunista” na cidade. Uma reunião no início de 1845 reunira cerca de 200 pessoas, demonstrando o descontentamento tanto de trabalhadores quanto da classe média. (K. Marx and F. Engels, Correspondence 1844–1851).

Sua estadia foi breve. Reprovava tanto a cidade quanto seu papel na firma familiar: “Barmen é horrível demais”, escreveu a Marx, “a perda de tempo é horrível demais e, o mais horrível de tudo, é o fato de ser, não apenas um burguês, mas na realidade, um fabricante, um burguês que toma partido ativamente contra o proletariado. Bastaram alguns dias na fábrica do meu velho para me colocar frente a frente com essa abominação, que eu havia até então mais ou menos negligenciado”. (idem)

A postura política de Engels alarmou seu pai. Perseguido pela polícia, transferiu-se para Bruxelas em 1845, instalando-se próximo a Marx. Sobre esse novo período, Gustav Mayer registrou: “Nunca mais trabalharam em tão estreito contato quanto naqueles anos que antecederam a Revolução [de 1848], quando estavam elaborando sua posição definitiva tanto na filosofia quanto na política prática”. (op. cit.)

Kautski descreve essa transição: “Engels percebeu que, com suas opiniões atuais, uma estadia na piedosa Barmen, no seio de uma família ortodoxa e altamente conservadora, era insuportável. Abandonou de vez a vida mercantil e foi para Bruxelas, onde Marx também se encontrava, após ter sido expulso da França devido a investigações do governo prussiano. E então começou para ambos um ativo trabalho conjunto. A base teórica de sua obra foi rapidamente adquirida. Era necessário, por um lado, estabelecer um novo sistema científico; por outro, colocar o movimento operário existente sobre essa base e levá-lo à autoconsciência. Essa íntima união entre trabalho prático e teórico, de profundo significado para Marx e Engels, tornou-se um plano fixo e permaneceu assim por toda a vida. A partir desse momento, concentraram sistematicamente todas as suas forças nesse objetivo”. (op. cit.)

E complementa: “sua primeira tarefa científica foi romper definitivamente com a filosofia alemã contemporânea e também com os restos da jovem escola hegeliana. Juntos, escreveram uma crítica à filosofia hegeliana tardia (Stirner, Feuerbach, Bauer), que, no entanto, não foi publicada”, escreve o futuro líder da social-democracia alemã. (idem)

Essa obra — A Ideologia Alemã (1845) — constitui o primeiro trabalho conjunto maduro de Marx e Engels. O manuscrito, só publicado em 1932, sintetizava o materialismo histórico. Marx ironizaria que o abandonaram “à crítica corrosiva dos ratos”, mas seu valor é inquestionável.

A obra estabelece os fundamentos da concepção materialista da histórica, um manual fundamental da doutrina marxista. A polêmica serviu para romper de vez com os Jovens Hegelianos e também atacava a doutrina de diversos socialistas alemães que baseavam sua política em teses idealistas. Quer dizer, A Ideologia Alemã é um dos primeiros alicerces do materialismo histórico como base para o socialismo. É um dos principais trabalhos do marxismo no terreno da crítica filosófica e desenvolveria as ideias expressas inicialmente em A Sagrada Família. Como afirma o próprio Engels, em um de seus importantes escritos sobre a doutrina do materialismo histórico, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã (1886): “A dialética de Hegel, para ser aplicada ao materialismo, teve que ser virada de cabeça para baixo, ou melhor, colocada de pé, pois estava de cabeça para baixo.” Quer dizer, tiveram de retirar a base idealistas da dialética hegeliana, substituindo-a pelo materialismo. Mais tarde, Engels se dedicaria a escrever algumas obras mais sistemáticas sobre o assunto, como O Anti-Dühring (1878), Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico (1880) e Dialética da Natureza (1883). Marx também explicaria a concepção materialista em Teses sobre Feuerbach, ainda em 1845.

Em A Ideologia Alemã, os autores afirmam: “Não partimos do que os homens dizem, imaginam, concebem, nem dos homens narrados, pensados, imaginados, concebidos, para chegar aos homens de carne e osso. Partimos de homens reais e ativos, e, com base em seu processo de vida real, demonstramos o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e ecos desse processo de vida… A moral, a religião, a metafísica e todo o restante da ideologia, bem como todas as formas correspondentes de consciência, não conservam mais a aparência de independência. Elas não têm história, não têm desenvolvimento; mas os homens, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, modificam, junto com essa sua existência real, seu pensamento e os produtos de seu pensamento. A vida não é determinada pela consciência, mas a consciência pela vida.”

Contra o idealismo, postulavam que as condições materiais determinam a consciência, não o inverso. Quer dizer, partem da realidade material de conjunto para explicar os fenômenos sociais específicos, inclusive as ideias, antes vistas como o motor da humanidade. Da mesma forma, apontam o socialismo como um novo estágio de progresso, decorrente do capitalismo, criticando aqueles que queriam “fazer andar para trás a roda da história”.

Outra tese central: “só é possível alcançar a verdadeira libertação no mundo real e por meios reais, que a escravidão não pode ser abolida sem a máquina a vapor, a mula e a jenny de fiar, que o feudalismo não pode ser abolido sem a agricultura aprimorada, e que, em geral, as pessoas não podem ser libertas enquanto não conseguirem obter comida e bebida, moradia e vestuário em qualidade e quantidade adequadas. A ‘libertação’ é um ato histórico, não mental, e é realizada por condições históricas, pelo desenvolvimento da indústria, do comércio, da agricultura e das condições de interação”. (idem)

O Manifesto Comunista (1848) posteriormente desenvolveria essas ideias. 

Sobre a hegemonia ideológica, afirmavam: “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; ou seja, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força intelectual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção material controla ao mesmo tempo os meios de produção intelectual.” E apontam: “Cada nova classe que se coloca no lugar da que dominava antes dela é obrigada, apenas para levar a cabo seu objetivo, a apresentar seu interesse como sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade… ela deve dar às suas ideias a forma de universalidade e apresentá-las como sendo as únicas racionais, universalmente válidas.” (idem)

A classe trabalhadora só pode se libertar fazendo a revolução, tomando coletivamente os meios de produção dos quais está alienada sob o capitalismo: “Surge uma classe que deve suportar todos os fardos da sociedade sem usufruir de suas vantagens; que, expulsa da sociedade, é forçada ao antagonismo mais decidido contra todas as outras classes; uma classe que constitui a maioria de todos os membros da sociedade, e da qual emana a consciência e a necessidade de uma revolução fundamental… Em todas as revoluções até agora, o modo de atividade permaneceu intocado, e a questão era apenas a de uma distribuição diferente dessa atividade, uma nova repartição do trabalho entre outras pessoas; enquanto a revolução comunista dirige-se contra o modo de atividade precedente, suprime o trabalho e abole o domínio de todas as classes com as próprias classes, porque é levada a cabo pela classe que… é, em si mesma, a expressão da dissolução de todas as classes, nacionalidades, etc., dentro da sociedade atual… Tanto para a produção em larga escala dessa consciência comunista quanto para o próprio êxito da causa, é necessária a modificação em larga escala dos homens — modificação que só pode ocorrer num movimento prático, numa revolução; essa revolução é necessária, portanto, não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de outro modo, mas também porque a classe que a derruba só pode, numa revolução, conseguir livrar-se de toda a sujeira secular e se tornar capaz de fundar a sociedade sobre novas bases.” (idem)

Assim, destacam que “o comunismo, para nós, não é um estado de coisas que deve ser estabelecido, um ideal ao qual a realidade terá de se ajustar. Chamamos de comunismo o movimento real que abole o atual estado de coisas. As condições desse movimento resultam das premissas agora existentes.” (idem)

Estava estabelecido o socialismo científico, fundamentado no materialismo, em oposição ao socialismo religioso, idealista e utópico que marcara o socialismo até então. O comunismo não era uma ideia de engenheiros sociais, como Fourier, Saint-Simon, Owen, Proudhon, etc. Cada um desses tratou de criar uma sociedade futura com base nas suas próprias ideias. Marx e Engels chamam de comunismo a inevitável sociedade que surgirá da inevitável revolução proletária, oriunda das próprias contradições da economia capitalista, com a expropriação da burguesia.

Engels explicou a não publicação da obra: “De modo algum pretendíamos sussurrar os novos resultados científicos em volumes pesados apenas para o mundo erudito. Ao contrário, ambos já estávamos profundamente envolvidos no movimento político. Tínhamos certa influência no meio intelectual, especialmente na Alemanha Ocidental, e grande simpatia entre o proletariado organizado. Sentíamos o dever de fundamentar cientificamente nossas ideias, mas era igualmente importante para nós conquistar o proletariado da Europa — e, acima de tudo, o proletariado da Alemanha — para a nossa convicção. Assim que estávamos claros sobre nossas ideias, começamos a agir. Fundamos uma associação operária alemã em Bruxelas e conseguimos dominar a Deutsch-Brüsseler-Zeitung [Jornal Alemão de Bruxelas]. Ao mesmo tempo, colaborávamos com os democratas de Bruxelas (Marx era vice-presidente da Associação Democrática) e também com os social-democratas franceses, por meio do jornal Réforme, ao qual eu fornecia notícias sobre o movimento inglês e alemão. Em suma, nossas conexões com as organizações e a imprensa radicais e políticas eram tudo o que poderíamos desejar.” (Kautski, op. cit.)

Quer dizer, deixaram de lado a publicação do denso livro para começar a agir imediatamente, influenciando os meios revolucionários pequeno-burgueses e operários. Desse modo, a colaboração entre Marx e Engels está longe de ser apenas um projeto de formulação teórica. Muito pelo contrário, trataram de imediatamente buscar um terreno prática para materializar as novas concepções, buscando organizar a classe operária e elaborar o partido político da classe operária.