18.01.2024

A crise demográfica na fase imperialista do capitalismo

Taxa de reposição

Henrique Corsini

Tendência de redução da população mundial é mais um fator para alimentar a crise nos setores produtivo e de pensões

Já era do conhecimento de liberais como Adam Smith e David Ricardo que somente o trabalho humano, ainda que não compreendessem a questão em toda a sua profundidade, gera valor. Ou seja, a exploração do trabalho assalariado é uma necessidade para o funcionamento do capitalismo. E, como bem demonstra uma série de matérias publicadas na revista The Economist (Global fertility has collapsed, with profound economic consequences, 1/6/2023; The great global baby bust is under way, 14/6/2023; The economics of the great baby bust, 15/6/2023; New ways of making babies are on the horizon, 17/7/2023) poucos meses atrás, a burguesia imperialista não somente está a par da questão, como também entende o grande problema advindo da progressiva queda de natalidade no mundo todo: uma diminuição progressiva (não somente relativa, mas também em termos absolutos, dado tempo suficiente) da mão de obra disponível conforme a população de conjunto envelhece, que se traduz em gigantescos problemas futuros para o já fragilizado capitalismo mundial.

A questão demográfica em números

De maneira a fazer uma análise quantitativa da questão, é preciso estabelecer um critério de comparação, ou seja, qual a taxa de fecundidade responsável por uma “renovação” efetiva da força de trabalho disponível. Evidentemente, tal taxa depende das condições de vida médias numa sociedade: a mortalidade infantil, por exemplo, é, em geral, muito menor num país de capitalismo avançado que num país muito pobre. No entanto, nos serve utilizar os números referentes a países “desenvolvidos” dado que nestes a taxa de fecundidade necessária à reprodução da força de trabalho é a mais baixa. A cifra é de 2,1 nascimentos por mulher adulta.

Tendo estabelecido o número base de comparação, é interessante ir além dos números nos dias de hoje e compreender a sua evolução ao longo do tempo: a crise demográfica futura (uma realidade em diversos países imperialistas) já estava à vista.Comecemos com os países imperialistas, os dados da taxa de fertilidade foram retirados do Banco Mundial e os referentes ao percentual da população acima de 65 anos do CIA factbook. Dados mais precisos foram retirados dos registros dos países em questão, por exemplo, do Statistiches Bundesamt, no caso alemão.

19601975199020052020
EUA3,651,772,082,061,64
Alemanha2,371,451,451,341,53
Reino Unido2,691,811,831,761,56
França2,852,091,771,941,83
Itália2,402,171,331,341,24
Japão2,001,911,541,261,34

Nota-se sem muito esforço que o boom populacional do pós-guerra acaba no final dos anos 60, e que, após a crise de 1973, já está estabelecido o padrão de envelhecimento da população nos países imperialistas, situação que se agrava com o passar do tempo. 

Países como a Alemanha e a Itália se encontram num impasse demográfico há décadas. Não fosse a chegada de imigrantes, já teríamos observado quedas potencialmente catastróficas na população economicamente ativa. Com algumas exceções, já morrem mais pessoas do que nascem na Itália há trinta anos e no caso alemão há cinquenta. O déficit anual de nascimentos (ou seja, a diferença entre nascimentos e mortes registradas) na Alemanha nos últimos vinte anos foi, em média, maior do que cento e cinquenta mil; em 1916, quando o morticínio da Primeira Guerra Mundial começava a escalar, era duzentos e cinquenta mil. Faz quase oitenta anos que o país está “em paz”, mas os números denunciam um colapso populacional condizente com uma carnificina da grandeza da Primeira Guerra Mundial durando décadas.

No Japão, assim como na Itália, já se observa um decréscimo populacional há quase dez anos. Além disso, no caso japonês a quantidade de imigrantes é muito menor do que no caso europeu: pouco menos de 3 milhões de imigrantes vivem no país asiático em comparação com os mais de vinte milhões de imigrantes, ou descendentes de imigração recente, no caso alemão. Nos últimos dez anos, o déficit de nascimentos no Japão teve uma média acima de quatrocentos mil, um número superior a 1945, e com uma tendência de crescimento acentuado: no ano passado, o déficit foi de quase oitocentos mil. Estima-se que a população japonesa possa regredir a níveis do pós-guerra em cinquenta anos, ou seja, uma diminuição de mais de trinta milhões de habitantes, com o agravante de se tratar de uma população profundamente envelhecida, que muito provavelmente não será capaz de atingir o crescimento gigantesco visto nas décadas de cinquenta e sessenta.

Nos outros três países, observa-se uma estagnação gradual do crescimento populacional, mas nada ainda próximo ao desastre descrito acima. Nos Estados Unidos, observa-se uma diminuição rápida do superávit entre nascimentos e mortes desde a crise de 2008, mas os piores números são justamente referentes ao período da pandemia. Os casos britânico e francês são equivalentes.

Com a observação de que usualmente se divide a população entre 3 ou 4 faixas etárias, e que se assume nas divisões escolhidas que uma pessoa adulta permanece economicamente ativa até os 65 anos (uma artimanha que procura mascarar levemente o caráter da crise demográfica), completemos os dados acima com o percentual da população nos países imperialistas já não mais economicamente ativa. O Japão lidera o ranking com a população mais envelhecida: 28,7% da população japonesa tem mais de 65 anos; seguido da Itália com 23,5%, da Alemanha com 22,4% e da França com 21,0%. Finalmente, no Reino Unido 18,9% da população ultrapassa os 65 anos, e nos Estados Unidos 16,8%.

Mesmo com a chegada de muitos imigrantes das antigas colônias europeias e políticas de estímulo ao crescimento populacional, persiste a tendência ao envelhecimento da população, ou até mesmo de regressão populacional de conjunto.

Comparemos com os números dos quatro gigantes atrasados do mundo: o Brasil, a Rússia, a Índia e a China.

19601975199020052020
Brasil6,064,422,901,971,64
Rússia2,521,981,891,291,50
China4,453,572,511,621,28
Índia5,925,204,042,962,05

No Brasil, observamos uma intensa queda na taxa de natalidade, acompanhada de uma queda constante na diferença entre nascimentos e mortes, se era de mais de dois milhões em 2008, em 2022 mal ultrapassava a casa do milhão. Em 2020, mais de 10,5% da população brasileira já havia ultrapassado os 65 anos. Nos estados mais pobres do País, a taxa de fecundidade se aproxima por baixo de 2, sendo a mais alta a do Acre, de 1,98. Já nas regiões sudeste e sul, observamos números parecidos aos dos países imperialistas: em São Paulo 1,26; no Rio de Janeiro 1,32; e no Rio Grande do Sul 1,30.

Na Rússia, já se podia observar o fenômeno do envelhecimento da população nos tempos da União Soviética, contudo, é evidente a catástrofe de 1991. Entre 1993 e 2005, o déficit anual de nascimentos teve uma média superior a oitocentos mil; tratou-se de uma destruição equiparável àquela causada pelas guerras mundiais. Mesmo com a tímida retomada econômica da era Putin, permanece o ano de 1991 como o pico da população russa, que vive hoje um período de estagnação devido à imigração, uma vez que as mortes ainda superam os nascimentos. Dentre os quatro países atrasados listados, a Rússia tem a maior parcela da população acima dos 65 anos: 15,6%.

Na China, apesar da instituição da política de filho único com a ascensão ao poder da ala do Partido Comunista liderada por Deng Xiaoping, seria somente após a restauração do capitalismo que a taxa de fecundidade do país cairia abaixo de 2,1: em 1995, já era de 1,59 nascimentos por mulher. O resultado é uma diminuição progressiva do número de chineses teoricamente capazes de integrar o mercado de trabalho, observada, por exemplo, uma redução superior a três milhões de 2011 para 2012. Do ponto de vista institucional, a legislação chinesa, procurando combater o envelhecimento da população, aboliu oficialmente a política do filho único na década passada e, no começo desta década, a questão se inverteu: a discussão dentro da cúpula do PC visa agora estimular um aumento da taxa de natalidade chinesa. Hoje, mais de 14% da população ultrapassa os 65 anos.

A Índia exibe um comportamento muito próximo ao brasileiro, com um pouco mais de uma década de atraso, e sua taxa de natalidade já está abaixo da necessária à reposição. No entanto, é importante observar que nas regiões mais urbanizadas a taxa de natalidade é muito inferior a 2,1, de maneira semelhante ao Brasil e a China. Dentre os quatro gigantes atrasados, a Índia tem a população mais jovem, somente 6,8% ultrapassa os 65 anos.

Está estabelecido dentre os países mais importantes do mundo, atrasados ou de capitalismo avançado, a tendência ao envelhecimento da população. Apesar de em queda livre, a taxa de fecundidade mundial ainda ultrapassa a taxa de reposição, em grande parte, graças ao continente africano.

19601975199020052020
África (cont.)6,656,686,005,014,33
Mundo4,704,083,312,602,30

Entretanto, a tendência geral é a mesma, com algumas décadas de atraso. Nos últimos dez anos, a taxa de natalidade africana tem caído, em média, 1,3% ao ano; ou seja, mantido esse comportamento, em pouco mais de cinquenta anos o continente africano entrará num período de transição demográfica.

Mais algumas palavras acerca da evolução da taxa de fecundidade mundial. O primeiro fenômeno refere-se à queda rápida de 1968 a 1978, de 4,99 a 3,78, alinhando-se com o período de grande crise econômica depois de 1973. Mantém-se a queda, desta vez desacelerada, até que a restauração do capitalismo no antigo bloco stalinista, e o colapso civilizatório dele recorrente, provoca mais uma queda marcada. Volta-se a queda cada vez mais lenta até o ano de 2016, em que a curva da evolução temporal da taxa de natalidade deixa de ser convexa para tornar-se côncava novamente. Nos dados consultados, ainda não foi possível identificar os efeitos que a pandemia teve sobre a evolução da taxa de natalidade justamente por estes terminarem no ano de 2020. Não obstante, se a série de reportagens publicadas na The Economist no mês de junho acerca do tema pode servir de parâmetro, a evolução da situação não é positiva e evoca mais crises para o já moribundo sistema capitalista mundial.

As consequências econômicas do envelhecimento da população

Desenhado o cenário da catástrofe demográfica ou, como coloca um dos principais veículos da imprensa do grande capital, a revista inglesa The Economist, o baby bust global, fazendo oposição ao baby boom do pós-guerra, tratemos de suas consequências. Partamos do próprio veículo de imprensa da burguesia imperialista, que na matéria intitulada Global fertility has collapsed, with profound economic consequences (a fertilidade global colapsou, com consequências econômicas profundas), publicada no dia primeiro de junho deste ano, abordou a questão.

“Não importando o que ambientalistas digam, a diminuição da população causa problemas. O mundo está muito longe de cheio e as dificuldades econômicas são muitas. A mais óbvia sendo o aumento na dificuldade para pagar pensões e aposentadorias. […] Se no mundo rico hoje existem cerca de três pessoas entre os 20 e 64 anos para cada uma com mais de 65, em 2050 haverá menos de duas. As implicações são maiores impostos, aposentadorias mais tardias, retornos mais baixos nas poupanças e, possivelmente, crises orçamentárias nos governos.”

Uma breve observação que não trata diretamente do tema, mas que é interessante, a observação que começa o parágrafo denuncia que a questão ambiental é uma farsa em diversos sentidos, trata-se simplesmente de uma ferramenta do imperialismo na sua tentativa de subjugar os povos do mundo.

Primeiramente, é preciso dizer que parte da colocação no parágrafo é cinismo profundo, como deixaram muito claras as manifestações francesas contra o aumento da idade de aposentadoria no começo deste ano. Enquanto o governo francês destina centenas de bilhões de euros aos grandes monopólios imperialistas todos os anos, evoca-se a cartada da ausência de verba para pagar pensões. Além disso, a “crise orçamentária” já é uma realidade em quase todo o mundo, vide o déficit astronômico norte-americano, por exemplo.

Com essas pequenas considerações, o conteúdo da matéria da The Economist é real: a crise demográfica engendra uma crise no funcionamento do sistema capitalista. Com a diminuição progressiva da mão de obra disponível, está estabelecida a necessidade de um regime de exploração cada vez maior, não para a prosperidade do sistema capitalista, mas para a sua própria sobrevivência. Se as respostas populares à política neoliberal já foram explosivas, a crise demográfica coloca uma espécie de bomba atômica na luta de classes para um futuro não muito distante.

A matéria faz o apontamento correto, particularmente depois da análise numérica feita na seção anterior, de que a imigração, apesar de hoje crucial para o funcionamento da economia de diversos países imperialistas, não é uma solução para o problema demográfico a longo prazo. Em suas palavras, com a queda universal da natalidade, faltarão trabalhadores “qualificados” vindos dos países atrasados. 

Além disso, coloca que caso a população do mundo pobre pudesse atingir seu potencial, não seriam precisos mais nascimentos para lidar com a falta de mão de obra qualificada. De fato, seria esse o caso a médio prazo, mas trata-se evidentemente de uma impossibilidade no capitalismo como o próprio autor admite: “no entanto, é difícil encorajar o desenvolvimento – e quanto mais rápido países enriquecem, mais cedo envelhecem.” Dentro dos marcos do capitalismo em sua fase imperialista, a crise demográfica é uma fatalidade da natureza; é o que pensa a burguesia. 

Outro problema proveniente do envelhecimento da população é a perda de dinamismo social e econômico. Evidentemente, o problema da ausência de dinamismo econômico está principalmente ligado aos gigantescos monopólios imperialistas que controlam a economia mundial, e cujos interesses usualmente são contrários ao desenvolvimento econômico, mas mesmo nesse contexto a juventude pode cumprir um papel crucial.

Fica a pergunta: por que as pessoas não querem mais ter filhos? A resposta nua e crua é que para muitos simplesmente não é economicamente viável, ainda que queiram tê-los, em particular nas cidades onde o custo de vida é muito maior do que no campo. Estamos diante de uma questão insolúvel: “mesmo que [os problemas econômicos] fossem resolvidos, o desenvolvimento econômico provavelmente levaria a uma queda da fertilidade abaixo da taxa de reposição.” Interessante é que mesmo a Índia, um país onde grande parte da população vive na miséria, já tenha uma fertilidade abaixo da taxa de reposição.

Diversos países, particularmente na Europa, procuraram introduzir diversas políticas de subsídio com o objetivo de estimular seus cidadãos a terem filhos. Nada teve sucesso, ou se houve algum sucesso, não foi o suficiente para reverter o quadro geral. A revista traz o caso de Singapura, uma espécie de “paraíso capitalista”, pelo menos é como se propagandeia o preposto norte-americano no sudeste asiático, em que a taxa de fertilidade se mantém em 1,0 apesar de uma série de subsídios. 

Assumindo, então, que o fenômeno do envelhecimento da população é uma “máxima da natureza” na fase capitalista da humanidade, seria preciso um desenvolvimento das forças produtivas superior ao colapso humano. É possível um desenvolvimento das forças produtivas numa escala suficiente para dar conta da progressiva diminuição da mão de obra? Se a política neoliberal serve de parâmetro, ou seja, se para o funcionamento do capitalismo antes da crise demográfica que se desenha já era necessária a destruição econômica, a desindustrialização operada em todo o planeta numa escala vista somente nas duas guerras mundiais (como os próprios dados da crise demográfica apontam), a resposta é: muito improvável, quiçá impossível. 

“Eventualmente, portanto, o mundo terá de lidar com menos jovens – e possivelmente uma população em declínio. Com isso em mente, os avanços recentes em inteligência artificial não poderiam ter vindo num melhor momento. Uma economia ‘über-produtiva’ dominada por inteligência artificial poderá ter facilidade em sustentar um número cada vez maior de aposentados. Eventualmente, a inteligência artificial poderá gerar ideias por si própria, reduzindo a necessidade da inteligência humana. Combinada com a robótica, a inteligência artificial poderá também tornar o cuidado dos idosos um trabalho menos intensivo.”

É assim que responde à pergunta o autor da matéria saída na The Economist. Não é preciso um grande conhecimento técnico do tema, que, na verdade, faz a declaração parecer ainda mais absurda, para se dar conta de se tratar de uma esperança infundada. Algo confirmado pelo último parágrafo do texto em que este compara a crise por vir com a hipótese malthusiana de que seria impossível alimentar uma população crescente, algo evidentemente provado falso pela história. A comparação não faz o menor sentido. Na época em que o capitalismo ainda não havia se consolidado como regime dominante e ainda estava varrendo a podridão feudal da Europa, como reconhecido pelos próprios marxistas, o capitalismo era uma força profundamente progressista; não fosse isso, a natureza do problema é completamente diferente. 

Mais interessante ainda é o fato de que para lidar com as infinitas crises do capitalismo, mesmo para um autor escrevendo para uma revista da burguesia imperialista, é preciso imaginar, sem dizer ou se dar conta, um mundo pós-capitalista. “Eventualmente, a inteligência artificial poderá gerar ideias por si própria, reduzindo a necessidade da inteligência humana.” Levada às últimas consequências, essa frase nada mais é do que a extinção do trabalho humano como uma necessidade econômica. Uma evidente impossibilidade no capitalismo.

Na linha das crenças selvagens, outra matéria interessante foi publicada na revista The Economist intitulada New ways of making babies are on the horizon (“Novas maneiras de fazer bebês estão no horizonte”). Nela, o autor traz o trabalho verdadeiramente inacreditável de cientistas japoneses que, desculpadas quaisquer imprecisões, foram capazes de transformar células da pele de ratos em uma espécie de análogo de células-tronco, em 2006. Outro grupo, também de cientistas japoneses, teria em 2016 conseguido transformar tais células análogas, originadas de ratos fêmeas, em óvulos, que foram fecundados e deram origem a oito filhotes saudáveis (ainda que a taxa de sucesso na geração de filhotes saudáveis seja baixíssima, inferior a 5%). O mesmo grupo neste ano foi capaz de transformar células de um rato macho em óvulos. Para além de questões morais, trata-se de um avanço gigantesco do ponto de vista técnico.A matéria procura pintar essa nova técnica, a GIV (gametogênese in vitro), ainda num estágio muito distante de uma aplicação em larga escala, como deixa claro uma pesquisadora, Amander Clark, da Universidade da Califórnia, como uma possível nova revolução na questão reprodutiva, tal qual a fertilização in vitro. Para além dos obstáculos técnicos, é absolutamente impensável a sua utilização numa escala suficiente para a reversão da crise populacional. Como procuramos mostrar a todo o momento, não se trata de um problema puramente técnico, mas sim social e, na essência, econômico.

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