De todas as artes, talvez sejam as artes plásticas as que tiveram a evolução mais lenta na história brasileira. Certamente pela dificuldade técnica do período colonial, apenas superada pela extrema riqueza do ouro em Minas Gerais no século XVIII, que nos deu um gênio da envergadura de Aleijadinho e exemplos pontuais da arquitetura, escultura e pintura barroca principalmente em Salvador e Ouro Preto. Além dessa dificuldade material, por demais óbvia para uma colônia, há quem defenda que a lenta evolução das artes plásticas brasileiras também está ligada à herança portuguesa, país com pouca tradição nas artes plásticas se comparada à vizinha Espanha. Não nos cabe aqui um debate sobre essa ideia, que precisaria de uma avaliação mais detalhada das artes em Portugal. Fato é que as artes plásticas se desenvolveram com mais lentidão no Brasil, principalmente se comparada à música e à literatura.
No século XIX, quando uma arte mais nacional começa a se despertar juntamente com a independência política do País, a literatura e a música nacionais se desenvolvem com grande rapidez. O Brasil do século XIX apresenta ao mundo escritores da envergadura de um Gonçalves Dias, José de Alencar, Machado de Assis, o maior de todos eles, apenas para ficar em alguns exemplos. Fato é que a literatura nacional apresenta uma evolução ininterrupta durante todo o século XIX até as revoluções modernas do início do século XX. Na música, dá-se algo parecido. O século XIX dá um compositor com o Padre José Maurício é um gênio de envergadura internacional como Carlos Gomes, numa evolução que também chegará em seu auge na música modernista.
Nas artes plásticas, tal evolução é mais lenta. Aparecem grandes nomes da pintura, como Pedro Américo, que consegue enorme popularidade e é considerado um dos grandes pintores das Américas no que diz respeito ao domínio da técnica. Diferentemente da literatura e da música, no entanto, os pintores têm maior dificuldade em se livrar das técnicas acadêmicas, meramente copiadas das academias europeias. Essa situação só vai mudar totalmente a partir do modernismo, quando as artes plásticas brasileiras vão encontrar, definitivamente, uma expressão mais nacional.
As considerações sobre a evolução da pintura nacional durante todo o século XIX são muitas. O que importa para nós aqui é mostrar algo que é comum entre a maioria dos críticos e historiadores da arte: a importância de José Ferraz de Almeida Júnior como um marco na criação de uma pintura nacional. Sérgio Milliet afirma que “juntamente com Victor Meireles, de quem foi discípulo, e muito mais que Pedro Américo, Almeida Júnior tem para a pintura nacional a importância de um marco divisório. Com ele se afirma a nossa liberdade artística e por ele conquistamos um lugar na história da arte contemporânea” (Pintura para sempre, Sérgio Milliet).
Fernando de Azevedo explica a importância de Almeida Júnior como um marco na evolução da pintura nacional. “Ele foi não o início, mas o marco de uma evolução natural que se vinha processando desde os pintores de história ‘até a geração de Santa Rosa e de Portinari’: a evolução do idealismo para o realismo, de uma arte em que predominava a preocupação de beleza e de fazer ‘grande’, para uma arte naturalista, de observação e de verdade, inspirada nas paisagens geográficas e sociais do país. O lugar que ele ocupa, na evolução da pintura nacional, como o pintor tipicamente brasileiro, é o mais alto e o mais importante que conquistou um artista no século passado (…) De volta, em 1882, a São Paulo, e atirado, fora da órbita das influências acadêmicas e urbanas, à pequena cidade, deserta e escura, centro de uma vida agrícola intensa, o que se oferecia aos olhos do pintor paulista era essa vida rural, da fazenda e dos cafezais, nos seus aspectos, costumes e tipos dominantes. A fórmula luminosa, não a impressionista, ‘mas a de Cabanel, mais primária’, ele a trouxe da Europa, para os seus quadros, de cores nítidas e quentes” (A cultura brasileira, Fernando de Azevedo).
Filho do interior do Brasil
José Ferraz de Almeida Júnior nasceu em Itu, no interior paulista, em 8 de maio de 1850. Filho de um humilde alfaiate, Almeida Júnior demonstrou desde cedo uma habilidade incomum para o desenho. Seu talento chamou atenção de figuras locais, que viabilizaram sua formação no Rio de Janeiro. Em 1869, já na capital do Império, ingressou na Academia Imperial de Belas Artes, onde teve aulas de pintura histórica com Victor Meirelles e de desenho com o francês Jules le Chevel.
O jovem aluno destacou-se como retratista e recebeu prêmios ainda em sua formação. O imperador D. Pedro II, em visita à classe de Almeida Júnior, soube de seu talento e ofereceu ao pintor a participação em um concurso assim que terminou o curso, em 1875. No entanto, Almeida Júnior recusa o convite e retorna a Itu.
No interior paulista, Almeida Junior consegue certa fama e vive de retratos. Quando o imperador, em visita à região de Itu para a inauguração da estrada de ferro Mogiana, tem contato com o retrato de Antônio Queiroz Telles, futuro Visconde de Parnaíba, se encanta e manda chamar o pintor. Segundo se conta, Pedro II lembrou do antigo aluno da academia e oferece uma bolsa de estudos na Escola Superior de Belas-Artes de Paris, então epicentro da arte mundial. Em novembro de 1876, Almeida Júnior embarca para a Europa.
Na capital francesa, Almeida Júnior frequentou a prestigiada École des Beaux-Arts e entrou em contato direto com o realismo de artistas como Gustave Courbet e com a pintura de gênero, que valorizava as cenas do dia a dia. Essa experiência foi fundamental: ao invés de se fixar apenas nos grandes temas históricos ou mitológicos, começou a ver no cotidiano popular um terreno fértil para a criação.
Durante os quase cinco anos de permanência na Europa, consolidou sua técnica rigorosa, de bases acadêmicas, mas deixou-se contaminar por uma paleta mais vibrante e uma observação sensível da vida comum.
De volta ao Brasil em 1882, Almeida Júnior poderia ter se instalado no Rio de Janeiro, centro da vida cultural. Mas optou por São Paulo, então em crescimento acelerado com o ciclo do café. Ali abriu seu ateliê e tornou-se figura disputada pela elite paulista, que o procurava para retratos. Em 1885, recusa novamente um convite, dessa vez feito por Victor Meirelles para que ocupasse sua vaga na Academia.
A preferência de Almeida Júnior por continuar em São Paulo parece ter muita relação com o caminho que buscava e encontrou para sua arte. O pintor via nas pessoas e nas paisagens daquela São Paulo que dava os primeiros passos para o desenvolvimento econômico, a inspiração ideal para o seu trabalho.
“O nosso grande pintor do fim do século passado deveria, com irrepreensível lógica, ser paulista. De Pernambuco se deslocava para São Paulo a primazia da nossa riqueza agrária, com a decadência da lavoura do açúcar e o surto vitorioso do café.
“A significação social da arte de Almeida Júnior é a fixação magistral de um ambiente que tanta importância viria a exercer em nossa vida, como fator econômico e político, durante todos os nossos quarenta anos de primeira república.
(…)
“O tipo humano sobre cujos ombros frágeis e vergados de todas as misérias iria construir-se o majestoso parque industrial de São Paulo nos primeiros vinte e cinco anos do século XX, era o humilde caipira que o sr. Monteiro Lobato popularizaria na pungente caricatura que é o Jeca Tatu.
“Almeida Júnior é o seu retratista fidelíssimo e carinhoso. Assim o assinalaram todos os seus críticos, Brasílio Machado, Monteiro Lobato, Sérgio Milliet e outros.
“Essa a importância social da sua obra. Nela não encontravam política nem intenções revolucionárias. Mesmo porque as grandes reivindicações populares do momento vinham de ter soluções satisfatórias com a abolição da escravatura e a proclamação da República” (Almeida Júnior, Luís Martins)
O pintor começou a desenvolver o que se tornaria sua marca mais original: quadros de trabalhadores rurais, caipiras, homens e mulheres do interior. Obras como “Caipira picando fumo” (1893), “O violeiro” (1899) e “Amolação interrompida” (1894) captam gestos simples — fumar, tocar viola, trabalhar — mas revestidos de monumentalidade.
Essas pinturas romperam com a visão idealizada do Brasil apenas como cenário exótico ou palco de grandes feitos históricos. Pela primeira vez, o homem comum do interior surgia como protagonista da tela.
Almeida Júnior passou a ser reconhecido não só como grande retratista dos personagens da alta sociedade, mas também como criador de uma vertente genuinamente nacional na pintura. Suas exposições eram concorridas e, em 1898, foi nomeado diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, recém-criada.
O crítico Luís Gonzaga Duque Estrada chegou a afirmar que ele representava “o verdadeiro pintor brasileiro”, em contraste com artistas que ainda buscavam apenas repetir fórmulas europeias. Sua obra foi vista, posteriormente, como precursora do modernismo, justamente por valorizar temas nacionais. O mesmo Duque Estrada ao analisar a exposição do pintor na Academia em 1884, afirmava: “Entre os artistas que enviaram quadros à última exposição acadêmica de 1884, aquele que acusava, por suas obras, maior originalidade e mais nítida e moderna compreensão da arte era Almeida Júnior. Para mim e, sem dúvida, para muitos, Almeida Júnior vale por grande parte dos expositores que ali figuravam.
“Ele é a sua obra. Forte, obscuro por índole, devotado ao estudo como é devotado ao canto de terra, na província de São Paulo, onde viu pela primeira vez a luz; baixote e quase imberbe, simplório no falar e simplório no trajar, a arte é para ele uma nobre profissão e não uma profissão elegante, agradável ao sentimentalismo das meninas românticas”. (A Arte brasileira (pintura e escultura)).
Monteiro Lobato, em artigo sobre o pintor, traça brevemente a evolução da pintura brasileira, destacando o gênio de Pedro Américo e afirmando que “A madrugada do dia seguinte raia com Almeida Junior, que conduz pelas mãos uma coisa nova e verdadeira – o naturalismo. Exerce entre nós a missão de Courbet em França. Pinta, não o homem, mas um homem o filho da terra, e cria com isso a pintura nacional em contraposição à internacional dominante”. E continua: “em contacto permanente com o homem rude dos campos, único que o interessava, porque único representativo, hauriu sempre no estudo deles o tema de suas telas. Compreendia-os e amava-os, porque a eles se ligava por uma profunda afinidade racial” (Almeida Júnior, Monteiro Lobato).
Morte trágica
No auge de sua carreira, Almeida Júnior teve um fim trágico. Em 1899, em Piracicaba, foi assassinado por um primo, movido por ciúmes de um romance atribuído ao pintor. Sua morte precoce, aos 49 anos, interrompeu uma trajetória que poderia ter ido ainda mais longe.
Monteiro Lobato, descreve assim a morte de Almeida Júnior: “Almeida Junior estava em pleno apogeu quando, de pancada, mão assassina lhe cortou o fio da vida.
“O pincel criador de tantas obras primas ficou de lado.
“Ninguém o retomou ainda.
“O veleiro dos temas nacionais continua quase intacto, à espera de novas individualidades de gênio que lhe garimpem o ouro.
“Por fatalidade, mal abrolha no Brasil um artista capaz corre logo a morte violenta a amordaçá-lo.
“Os mais representativos – Almeida Junior, Euclides, Pompeia, Ricardo – caíram assim em flor. Mas os gordanchudos, os falsificadores do bom gosto, os inimigos da verdade, os Pachecões atravessados de Acacio e Brummel, essas almas de capacho e essas carnes balofas que a terra está reclamando para elaborar com a substância delas os joás espinhentos, a guanxuma, a barba de bode e outras calamidades vegetais, esses se eternizam na vida. Não surge bala que os derrube, nem faca abençoada que lhes ponha a tripa à mostra. Morrem todos no fim da vida, de pigarro senil…” (idem)
Almeida Júnior deixou um legado duradouro. Ao dar protagonismo às figuras do interior paulista, contribuiu para a construção de uma iconografia nacional. Seus “caipiras” não são caricaturas, mas personagens fortes, orgulhosos, que dignificam o trabalho simples e a vida cotidiana.
Hoje, Almeida Júnior é celebrado como um dos maiores nomes da pintura brasileira do século XIX, e suas telas figuram entre as mais emblemáticas da Pinacoteca e de outras coleções nacionais. Seu olhar aguçado sobre o Brasil interiorano antecipa, em muitos aspectos, o projeto modernista de busca por uma arte genuinamente brasileira.
“É com Almeida Júnior, o mais original e pessoal de todos os nossos artistas do século XIX, que se funda verdadeiramente a pintura nacional, se dá a bifurcação entre os europeizantes que insistem na conservação das técnicas estrangeiras, e os autoctonistas que se aplicam à procura do brasileiro, do regional, do novo, no assunto como na técnica, e se marca mais fortemente, pela pesquisa do ocidental, do individual, a evolução do idealismo ao realismo. O grande artista que, pensionado pelo Imperador, esteve em Paris, quando mais acesa se travava a luta pela renovação das técnicas picturais e atingia o seu ponto culminante a história do impressionismo com Camile Pissarro, Auguste Renoir, Edouard Manet, Edgar Dégas e outros, “passou incólume pela batalha artística, segundo já observou Sérgio Milliet, e voltou tão brasileira quanto antes”. Pode-se dizer que o pintor paulista fez prova de originalidade, abordando francamente o atual e o vivo, – cenas, costumes e tipos locais –, depois de ter tentado com êxito a pintura histórica em A partida da monção, uma tela magnífica e a Fuga para o Egito, que é um dos nossos melhores trabalhos inspirados em assuntos bíblicos. Ele convenceu-se afinal de que encontraria e efetivamente encontrou os elementos de sua produção ao lado de si mesmo, na própria vida ambiente, nos aspectos de todos os dias, nas idas e vindas dos seres familiares no meio rural de São Paulo. Ele é, de fato, – para empregar as expressões de Luís Martins –, ‘o pintor da madrugada de nosso fastígio agrícola e o fixador de nossa vida rural, do início da era da grandeza do café’ ; em seus quadros Caipira negacenado, Caipira picando fumo, O violeiro, Amolação interrompida, Na espreita, Os caipiras, Saudades, Mendiga, O caçador, Cena de roça e outros, em que se juntam a ciência do pintor e a sinceridade do observador, há, sem dúvida, ‘um espírito brasileiro inequívoco, qualquer coisa de inconscientemente bárbaro e fecundo, uma fatalidade de terra moça, que nenhum grande artista estrangeiro conseguiria traduzir. Ele é o primeiro clássico de nossa pintura” (A cultura brasileira, Fernando de Azevedo)
Principais obras
1. Caipira Picando Fumo (1893)
Talvez sua obra mais famosa, este quadro mostra um homem simples do interior, sentado, concentrado no gesto cotidiano de picar fumo para enrolar o cigarro.
O que poderia ser uma cena banal ganha monumentalidade: o caipira ocupa o centro da tela, tratado com dignidade. A luz natural, a textura da madeira e das roupas reforçam a atmosfera realista.
2. O Violeiro (1899)
Pintado no ano de sua morte, traz um homem tocando viola, instrumento ligado à cultura popular do interior.
Mais do que o ato musical, a tela evoca o universo das rodas de viola e da tradição sertaneja. O músico é retratado em primeiro plano, em postura serena, quase meditativa. A obra é frequentemente vista como um tributo ao espírito popular brasileiro e ao poder da música popular.
3. Amolação Interrompida (1894)
Aqui, o trabalhador rural é surpreendido no ato de amolar sua ferramenta, interrompendo o movimento para olhar para fora da cena.
O quadro é elogiado por captar o instante, quase como uma fotografia. Além disso, traz um detalhe psicológico: o olhar distante, que sugere pensamentos, sonhos, talvez uma pausa para a imaginação.
4. O Descanso do Modelo (1882)
Pintado na França, mostra um momento íntimo de um ateliê: o modelo, em trajes simples, descansa.
A obra reflete a influência europeia de cenas de interior e gênero, mas já aponta para a humanização de figuras comuns, longe do heroísmo da academia. É uma ponte entre a formação parisiense e a futura maturidade brasileira do artista.
5. Leitura (1892)
Neste quadro, uma jovem do interior lê atentamente um livro, imersa no ato da leitura.
A pintura é delicada e transmite calma, mas também sugere o valor do conhecimento, da cultura e da interiorização da vida mental. Diferente dos retratos de elites, aqui a simplicidade ganha profundidade espiritual.
6. O Derrubador Brasileiro (1879)
Ainda bastante acadêmica, esta tela mostra um trabalhador derrubando árvores no interior.
Ela antecipa os “caipiras” de sua maturidade, mas já traz o tema do esforço físico e da vida rural como elementos dignos da pintura. Foi uma das primeiras tentativas de romper com o excesso de mitologia e história, trazendo o Brasil real para as telas.
7. Saudade (1899)
Para Monteiro Lobato, esse quadro é um dos mais representativos de Almeida Júnior: “enquanto houver corações dentro do peito humano, aquela simples figura de mulher comoverá profundamente”.
“Uma mulher do povo, moça ainda, morena, vestida de luto modesto, contempla, á luz duma janela, o retrato do marido extinto. A luz dá-lhe de chapa no rosto, onde se lê a dor muda duma viuvez precoce. Brotam-lhe lágrimas dos olhos, lágrimas de amante inconsolável. É dor e é saudade.
“Quanta verdade naquilo! Quanto sentimento! Que poema inteiro de mágoas resignadas naquela expressão!” (Almeida Júnior, Monteiro Lobato).