17.10.2025

Cézanne e a revolução da pintura moderna

Superando o impressionismo

Ao lado de Gauguin, Van Gogh, Seurat e outros, Paul Cézanne foi uma das figuras centrais do processo de renovação da pintura que se seguiu ao impressionismo

Falar de Paul Cézanne é falar da origem de um dos mais importantes processos de transformação formal da pintura no século XX. Ele foi o idealizador das teorias pictóricas que, nas mãos dos jovens artistas modernistas, dariam origem a uma enorme revolução na maneira de se pensar a pintura. Na gênese do futurismo, do orfismo, do vorticismo, de parte do expressionismo, do suprematismo, do neoplasticismo, do construtivismo, da arte cinética, da arte óptica, do minimalismo e tantos outros ismos do século XX, está o cubismo, e na origem do cubismo, estão as teorias e as obras de Paul Cézanne sobre o problema da representação.

Pode-se dizer que as duas pedras angulares da pintura de vanguarda, os dois movimentos mais influentes desta etapa histórica das artes plásticas, tenham sido, o surrealismo, por um lado, impulsionando um processo de radical renovação dos temas e modos de se pensar o processo criativo; e, por outro, no plano estritamente formal, o cubismo, que inaugurou o período mais radical de transformação das técnicas na pintura moderna.

Cézanne, o “pai” de toda esta revolução, foi uma figura singular da pintura do século XIX. Apesar de cronologicamente pertencer à mesma geração que Monet, Renoir, Morrisot, Sisley e Bazille, entre outros; sua obra pertence à geração seguinte, àquela de Gauguin, Van Gogh, Seurat e Munch, agrupados imprecisamente sob o rótulo de pós-impressionistas. Isso porque suas obras representaram o primeiro passo para a superação do impressionismo em sua fase madura, abrindo novos caminhos de desenvolvimento para a pintura do século seguinte.

Entre estes desbravadores, Cézanne ocupa um lugar central como importante teórico da pintura. Entre seus colegas, ele foi extraordinariamente longe em sua crítica ao impressionismo, a tal ponto que formulou, a partir dele, um programa diametralmente oposto, desenvolvendo uma pintura intelectual, analítica, fria e cuidadosamente trabalhada em oposição ao caráter puramente visual, espontâneo, sensual e impulsivo do impressionismo. Seu objetivo era a superação do impressionismo, criar uma alternativa de desenvolvimento a ele que antecedeu até mesmo a crise do movimento em sua evolução natural. Depois que se deu a crise, a obra de Cézanne adquiriu renovada importância, encarada, agora, como importante ponto de partida para os novos caminhos da pintura.

Seu ponto de partida, no entanto, era ainda o mesmo dos impressionistas: a conclusão de que uma rosa sobre uma toalha branca não era nada e não significava mais que uma determinada combinação de cores. Esta visão do pintor diante do mundo é um dado central para se compreender o modernismo francês, pois foi exatamente esta noção que permitiu a formação do cubismo e, posteriormente, da pintura abstrata a partir de bases racionalistas.

O impressionismo foi um produto revolucionário típico da crise política e ideológica ligada à desbarrancada do Segundo Império de Napoleão III e às conquistas recentes das novas tecnologias industriais, particularmente da indústria química, do surgimento da fotografia e da melhora dos pigmentos disponíveis no mercado.

A arte racionalista de Cézanne, por outro lado, que se ligará mais tarde à igualmente racionalista arte cubista, pertence ao período de estabilização do regime político francês e de refluxo das lutas revolucionárias durante a Terceira República, período só encerrado com a eclosão da guerra imperialista de 1914.

Estas correntes intelectuais da pintura eram uma reação, uma negação contra a era de otimismo superficial, de prazeres hedonistas, da burguesia e pequena-burguesia francesas no período, décadas marcadas pelo predomínio do art noveau no terreno da decoração e da arquitetura e pela assimilação do impressionismo na pintura, técnicas que, neste momento, passaram a ser identificadas com esta sociedade de prazeres financiados pelo colonialismo francês e suas novas conquistas na África e Ásia.

É significativo, portanto, o fato de que, ao longo de toda a década de 1860, Cézanne, autor de uma obra romântica, apaixonada, violenta e erótica, alinhada à influência de Delacroix, tenha evoluído, de 1880 em diante, para uma obra de caráter diametralmente oposto. Seu desejo a partir daí era claro: “fazer do impressionismo algo sólido e durável como os velhos mestres”, dito de outra forma “refazer Poussin através da natureza”.

O fato de Cézanne ter sido filho de um banqueiro, ao invés de torná-lo uma figura conservadora e ligada às classes dominantes, agiu, ao contrário, em seu benefício, permitindo um isolamento do assédio social que teria sido impossível à maioria dos artistas de sua geração. Outros pintores de sua época que criaram também um trabalho relevante recorreram a modelos de vida similares a fim de não serem absorvidos pela corrupção reinante. Gauguin, por exemplo, partiu para o Taiti, e Van Gogh, que não tinha nenhum recurso material para se sustentar, preferiu viver na miséria.

Poucas figuras na história da arte ocupam um lugar tão importante no processo de renovação das escolas. E Cézanne, incontestavelmente, foi um divisor de águas em sua época.

Abandonando a vida medíocre da burguesia

Nascido em janeiro de 1839 em Aix-en-Provence, no Sul da França, Paul Cézanne era membro de uma família da alta pequena-burguesia francesa em fase de acumulação capitalista. Ainda na infância do futuro pintor, seu pai, o comerciante Louis-Auguste Cézanne, em 1848, inicia um empreendimento decisivo na vida econômica da família, formando com seu sócio o Banque Cézanne et Cabassol. O crescimento da empresa nos anos seguintes acompanhará o movimento de crescimento e industrialização da isolada Aix-em-Provence, e o enriquecimento de Louis-Auguste proporcionaria a seu filho a segurança financeira que poucos artistas de seu tempo tiveram.

Paul manifestou interesse pelo desenho desde muito cedo, de modo que recebeu já suas primeiras aulas aos 10 anos na Escola Saint-Joseph, em Aix, ensinado pelo monge espanhol Joseph Gilbert.

Em 1849, foi matriculado no aristocrático Colégio Bourbon, fruto já da prosperidade do banco dos Cézannes. Ali, conheceu e travou amizade com duas figuras de grande importância em sua formação, o futuro romancista Baptistin Baille e Émile Zola. Eles permaneceram juntos por seis anos, até a conclusão de seus estudos.

Por ordens do pai, que ambicionava ter em seu único filho homem o futuro administrador de seus negócios, em 1859, Paul ingressa na Faculdade de Direito da Universidade de Aix. Ele, ainda assim, mantém seus estudos de desenho paralelamente.

Foi em meio a grandes brigas que Cézanne tomou a decisão de romper com as ambições paternas e abandonar o curso de Direito. Encorajado em sua decisão por Zola, Cézanne abandona Aix e viaja para Paris em 1861, onde já morava o amigo. Ele permaneceria, nesta primeira empreitada, apenas um ano na capital, e por novas pressões familiares, se vê obrigado a retornar à casa paterna.

Novamente em Aix, o jovem pintor se recusa, porém, a voltar ao curso de Direito, continuando, ao contrário, suas aulas de desenho. Sua vida nesta etapa é repleta de hesitações em meio aos conflitos entre os desejos do pai em torná-lo um homem de negócios, submetido à vida burguesa e à rotina no escritório, e seu desejo em se tornar pintor.

Acontece, nesta etapa, uma ofensiva mais séria de seu pai neste sentido, e Cézanne trabalha durante alguns poucos meses no banco, iniciativa que fracassa totalmente e termina com a nova partida do filho a Paris em finais de 1862.

O primeiro Cézanne: ‘expressionista’

Nesta nova tentativa, Cézanne permanece durante um ano e meio na capital, até o verão de 1864, quando vive próximo a Zola e conhece alguns artistas que exercem grande influência sobre ele, em particular seus colegas da Academia Suíça, como Camille Pissarro, Armand Guilhaumin, Francisco Oller e Antoine Gilhermet, com quem Cézanne passava as tardes discutindo acaloradamente a nova pintura em reuniões no Café Guerbois.

Também nesta segunda viagem ele se familiariza com as obras revolucionárias do realista Gustave Courbet e seu inconformado ex-discípulo Edouard Manet, que era então o ídolo da juventude artística de Paris. Paul Cézanne era também, desde a primeira viagem que fizera à capital, um grande admirador do romantismo exaltado de Eugène Delacroix, com suas cores incandescentes e suas composições melodramáticas. Nesta estadia, Cézanne chega a ter exposto um de seus quadros no Salão dos Recusados em 1866, obra que despertou celeuma entre a audiência que, enfurecida, teria tentado destruí-la, ocasionando a retirada do quadro do Salão. 

O próprio Zola saiu em defesa de sua pintura diante da recusa dela pelo júri do Salão Oficial, escrevendo um artigo publicado no jornal L’Événement. Um dos quadros de Cézanne mais conhecidos desta fase é justamente o Retrato do Pai do Artista Lendo L’Événement, onde Louis-Auguste surge sentado em sua poltrona lendo o artigo de Zola.

Suas telas destes anos (ao longo de toda a década de 1860) mostravam uma grande preocupação com a figura humana, pintadas a partir de um tratamento sólido e carregado que teria certa relação com o estilo de sua fase madura, que reincorpora estas qualidades da juventude. Este momento de sua obra é citado de maneira imprecisa como “período romântico” de Cézanne, mas era, essencialmente, uma combinação de temas consagrados da pintura, com as novas técnicas que já prenunciavam a emergência do impressionismo. Um dado surpreendente é a grande modernidade destes trabalhos, que muitas vezes parecem antecipar movimentos futuros da pintura, como o expressionismo. Suas telas nesta etapa eram pintadas principalmente em seu ateliê a partir da imaginação, com temas melancólicos e repletos de misticismo, incluindo imagens oníricas fantásticas, mitos gregos, temas religiosos ou cenas peculiares, executadas a partir de pinceladas enérgicas, carregadas de agressividade. Em sua evolução, porém, Cézanne abandonaria totalmente estes temas e técnicas em função de interesses cada vez mais analíticos dos problemas formais da pintura. O que ele deixa de lado, em primeiro lugar, seriam os temas imaginativos, em função da observação direta na natureza, a qual ele recorre de maneira cada vez mais frequente nos anos seguintes. Exemplos interessantes de sua pintura desta fase são obras como A Madalena ou Lavando um Cadáver, que mostra uma cena em um necrotério cuja posição das figuras remete também à imagem consagrada da Pietá. Executada toda a partir de variações de azul e branco, possui um espantoso paralelo com as pinturas da Fase Azul de Picasso. Ele possivelmente conhecia estas primeiras telas de Cézanne e foi talvez a partir daí que Picasso começou a analisar mais cuidadosamente as soluções formais do pintor francês antes da geometrização passar a interessá-lo.

A influência de Pissarro

Ao longo de seu desenvolvimento, Cézanne passa a preferir cada vez mais a pintura a partir da observação direta. Nesta fase, sua pintura vai se tornando cada vez menos carregada e adquire uma nova luminosidade a partir de suas conclusões acerca da luz natural, será sua fase impressionista.

Depois desta temporada, ele retorna mais uma vez a Aix, onde, para sua surpresa, já não encontra grande oposição do pai. Os desentendimentos familiares não duram muito tempo. Resignado pela decisão de Paul, Louis-Auguste Cézanne se reconcilia com ele e passa a apoiar sua atividade, mandando ao filho, regularmente, generosas somas de dinheiro que financiariam sua atividade por toda a vida.

Quando, em 1870, estoura a Guerra Franco-Prussiana, Cézanne permanece em seu retiro familiar em Aux, indo apenas eventualmente a Paris. Nesta altura, Cézanne pintava já regularmente ao ar livre, executando desde esta época numerosas telas da Montanha Sainte-Victorie. Ele acompanha à distância, residindo na baía de Marselha, os acontecimentos capitais de sua época: a derrota de Napoleão III, o levante operário da Comuna de Paris, a violenta repressão ao movimento e a instauração da Terceira República.

Ele retorna a Paris apenas em 1872, para ter suas obras mais uma vez rejeitadas no Salão. Na última viagem que havia feito à capital em 1867, Cézanne havia estabelecido uma grande amizade com Camille Pissarro, pintor de grande experiência que se torna um mestre para Cézanne nestes anos de amadurecimento. Fora através da influência de Pissarro que Cézanne começara a pintar ao ar livre.

A pintura de Cézanne começa a refletir estas novas ideias e técnicas apenas a partir de 1872, quando o contato entre eles foi retomado após a guerra. Seu impressionismo foi ensinado diretamente por Pissarro. Entre 1872-74, suas telas tornam-se mais luminosas, suas cores mais leves e as pinceladas menos carregadas. Entre as telas que refletem bem estas mudanças estão A Casa do Enforcado, Paisagem perto de Pontoise e A Casa do Dr. Gachet em Auvers.

Esta rápida evolução marcava sua adesão ao mais avançado movimento da pintura europeia do século XIX, e, ao mesmo tempo, também a unificação deste movimento em torno de um grupo coeso de amigos, que em 1874 realiza sua primeira exposição coletiva na casa do fotógrafo Nadar.

O período impressionista

Cézanne expõe aí alguns destes seus trabalhos ao ar livre, mas, curiosamente, nem mesmo entre este grupo avançado de pintores ele é facilmente aceito. Uma de suas telas em particular provoca a zombaria de alguns artistas e visitantes da exposição, sua obra Uma Olímpia Moderna, uma releitura e uma homenagem à famosa Olímpia de Manet pintada 10 anos antes. A obra, pintada de modo rápido e esboçado, apresentava a deusa acocorada numa nuvem sobre a qual a criada negra ergue um tecido branco diante do olhar atento de um senhor vestindo trajes contemporâneos e sentado em meio ao que parece ser sua sala de estar. É verdadeiramente uma visão fantástica como a de um sonho, perdendo o tratamento realista dado por Manet em sua obra original. Um crítico de arte do jornal L’Artiste lança um ataque feroz contra ele: “o Sr. Cézanne não pode ser outra coisa a não ser uma espécie de louco a sofrer de delirium tremens quando pinta”

O período propriamente impressionista de Cézanne foi relativamente curto, durando apenas cerca de cinco anos, situando-se como uma fase específica em meio à sua evolução original como artista. Mesmo seu impressionismo, porém, é um impressionismo sui generis, onde ele retoma regularmente os temas fantasiosos em detrimento do simples retrato da natureza exterior, como fizeram os demais artistas do movimento. Um exemplo típico desta sua abordagem é a obra A Tentação de Santo Antônio, tema recorrente na história da arte tratado aqui segundo as técnicas da pintura moderna. Na obra, o santo é cercado por uma figura demoníaca e rodeado de figuras representando a tentação material. Ao centro, está uma mulher nua, surgindo como uma Vênus modernista. A tela é toda delineada por pinceladas impressionistas alongadas e sobrepostas em uma profusão de cores usadas para construir o sombreado esverdeado, avermelhado e amarelado da imagem, sem se preocupar com a aproximação da realidade. Suas figuras são construídas como meras impressões, e o rosto de uma das crianças, por exemplo, resume-se a uma mancha vermelha e uma preta, sugerindo não uma pureza infantil, mas alguma criatura fantástica desfigurada. Este tratamento apareceria mesmo em suas telas mais tipicamente impressionistas.

A ruptura

A obra que é considerada sua última tela impressionista é As Banhistas, de 1877, que remonta mais uma vez a um tema mais característico do romantismo. Na obra, três mulheres de porte físico deformado, exageradamente robustas, constituem o tema do trabalho. Chama atenção, sobretudo, a imagem monstruosa da figura central, com seu grande abdômen e o rosto exageradamente simplificado, parecendo mais uma máscara que uma tentativa de sintetizar feições humanas reais. Observando-se mais atentamente o trabalho, nota-se a presença de um homem escondido no canto superior esquerdo da tela, cuja aparição, na realidade, desencadeia os gestos das mulheres cristalizados pelo artista. As três banhistas olham para ele e reagem com gestos bruscos, repelindo-o ou tentando esconder dele sua nudez. É uma obra tecnicamente bastante madura, onde a composição baseia-se no desenho de um triângulo e a unidade total da imagem é dada com a utilização de sombreados de cores nas figuras retiradas da paisagem ao fundo que conferem um aspecto plano à obra, um dado importante do caminho trilhado por Cézanne até aí. Esta tela, como outras banhistas que o artista viria a executar, tem grande importância na história da arte moderna, pois basta uma observação mais atenta do aspecto chocante destas banhistas, fundamentalmente antiestético, para se perceber imediatamente a relação entre elas e a revolucionária Les Demoseilles D’Avignon de Picasso, o marco zero da revolução cubista. De certa maneira, as prostitutas do pintor espanhol eram as banhistas modernas da cosmopolita Paris do século XX. Considerando-se também que os estudos preliminares das Demoseilles continham também uma figura masculina surgindo ao fundo — e mais tarde suprimida —, esta obra visionária de Cézanne pode muito bem ter sido o ponto de partida de Picasso, combinada, logicamente, com outras influências.

Um dos últimos episódios da participação de Cézanne no grupo impressionista foi a terceira exposição do impressionismo, de 1877, onde Cézanne tomou parte com 16 telas. Os insultos frequentes, no entanto, levaram-no a concluir que não havia nada para ele em Paris. Sua obra era totalmente marginalizada pelo público e criticada, ao mesmo tempo em que o impressionismo mais característico, de Manet, Renoir, Sisley e outros, era cada vez mais apreciado. Talvez a própria situação de independência material proporcionada pelos negócios de seu pai tenham preservado Cézanne das pressões que passavam a sofrer os outros impressionistas em tornar-se pintores da moda, adaptando sua arte ao gosto popular.

Ao final deste mesmo ano, Cézanne abandona Paris e se estabelece durante alguns meses em Pontisse, onde trabalha ao lado de Pissarro, o único dos impressionistas com quem manteria grande proximidade por toda a vida.

O ano de 1877 marca o início das inovações que seriam a marca registrada da pintura de Cézanne. Na tela Natureza-morta com Sopeira, o artista ainda não havia desenvolvido sua rejeição à aplicação do ponto de fuga como elemento de construção espacial, mas insinua pela primeira vez a subversão deste princípio ao apresentar a superfície da mesa onde estão os objetos, com uma inclinação exagerada, o que promove uma aproximação do tema central do espectador e confere a ele um poder visual superior. Sua teoria da utilização das cores, confundindo a tonalidade da parede com a que aparece na toalha, nas frutas, no cesto e no jarro, confere também uma unidade formal surpreendente à tela de conjunto, procurando igualar o tema central aos seus secundários da obra, uma das teorias que seria desenvolvida incansavelmente pelas vanguardas.

Entre os últimos anos da década de 1870 e o começo da década seguinte, Cézanne viveu principalmente no interior da França, viajando apenas eventualmente a Paris, em visita a exposições e a amigos, como Zola, ainda então seu amigo mais próximo.

A década de 1880

Em 1881, Cézanne já havia se afastado completamente do impressionismo e da tendência à captação da luz natural através das pinceladas contíguas e claras. Sua pintura ainda era realizada em grande medida ao ar livre, mas a solução da iluminação e da composição em suas obras eram já distintas do programa impressionista, inclinando-se ao contrário, à tentativa de solucionar abstratamente estes problemas. Ele abandona o interesse pela luz para se concentrar na forma.

Uma das divergências básicas com os impressionistas, além do problema da luz, era no que dizia respeito à composição. Cézanne considerava frouxas as soluções impressionistas que se baseavam puramente no enquadramento encontrado para os quadros, sem alterar nada do que viam à sua frente. Ele opôs a isto um cuidadoso estudo de composição. Um dos reflexos mais marcantes deste novo método é o tempo com que Cézanne passou a pintar cada quadro. Pensados cuidadosamente, eles eram executados por etapas, demorando às vezes um, três, e mesmo cinco anos até dar um trabalho por encerrado. Método diametralmente distinto ao de Monet, por exemplo, que executava uma obra em algumas poucas horas acompanhando a mudança da iluminação natural ao longo de um dia. Ocasionalmente, porém, Cézanne encontrava-se ainda com Renoir e Monet para trocar experiências e pintar juntos.

Um exemplo de sua produção típica destes anos é Rochas em L’Estaque, executada entre 1882 e 1885, onde a composição é organizada racionalmente e onde também já se vê a tendência à crescente geometrização dos elementos naturais do quadro. É, porém, apenas uma tendência ainda, ainda não muito clara na mente do pintor, mas vê-se claramente que ele caminha neste sentido.

Em 1886, o pintor formaliza sua união com Hortense Fiquet, quando seu filho, Paul, tinha já 14 anos. Apenas alguns meses mais tarde, morre Luis-Auguste, deixando à Cézanne e a suas duas irmãs toda a sua fortuna conquistada com o banco.

Outro fato importante ocorreu neste ano. Zola, já então um dos mais aclamados escritores da França, publicava seu romance L’Ouvre, que desgraçadamente colocaria um ponto final na amizade de uma vida entre os dois artistas. O ponto de divergência foi justamente o tema da obra. O protagonista do romance era um artista excêntrico e fracassado, transtornado por sua vida pessoal que é incapaz de terminar sua obra-prima, terminando por enlouquecer e se suicidar. Cézanne, horrorizado ao ler aquelas páginas, identificou que tal herói maldito era inspirado nele mesmo, em fatos reais de sua vida e traços de sua personalidade. Sem o dizer isso abertamente a Zola, Cézanne, após ler a obra, enviada a ele pelo próprio escritor, parabeniza o amigo e nunca mais volta a entrar em contato.

Curiosamente, o rompimento da amizade entre ambos marca o período em que se rompe também, pela primeira vez, o isolamento de Cézanne. Seus quadros, para sua própria surpresa, passam a ser apreciados pela sociedade, dito de outra forma, pela burocracia das artes de então, os críticos, comerciantes e colecionadores de arte.

Era, no entanto, ainda uma apreciação superficial, um subproduto do processo de assimilação do impressionismo pela burguesia francesa.

As naturezas-mortas de Cézanne, um triunfo da técnica moderna

Suas verdadeiras contribuições passavam tangencialmente a este processo, a saber, o estudo cuidadoso em busca da essência da representação pictórica. Após a descoberta da fotografia, os pintores avançados abandonaram qualquer pretensão de representação fiel da realidade. A pintura de Cézanne expressa um aprofundamento por este caminho. Sua ideia era encontrar a forma mais eficiente de representar um tema, realizando, para isso, um movimento de ruptura com determinados cânones artísticos, em particular, com a geometria euclidiana, a partir da qual se erguera a grande arte desde a Renascença até o impressionismo. Em seus quadros, o artista elabora o que poderia ser chamado de geometria cézanniana, a gradual distorção da perspectiva da tela em busca de uma maior expressividade dos temas retratados.

Cézanne realizou este trabalho em grande medida a partir de suas naturezas-mortas, que são parte fundamental de sua obra. Nestes quadros, o artista consegue dar vida própria a estes objetos inanimados e aparentemente desinteressantes, que, até então — com raras exceções —, foram apenas objetos de estudos de outros artistas. Em Cézanne, como em Van Gogh, por exemplo, as naturezas-mortas assumem a importância de um retrato ou de uma cena histórica, conseguindo simular, curiosamente, efeitos grandiosos e intensos a partir de meras maçãs, peras, jarros, vasos floridos, estátuas de gesso ou toalhas dobradas sobre uma mesa. Suas maçãs equivalem aos girassóis de Van Gogh, objetos portadores de grande força expressiva a partir de um simples tratamento de cores e uma combinação compositiva original.

Entre 1888 e 1890, a pintura de Cézanne amadurece de forma substancial e já é possível ver surgirem, neste período, os primeiros quadros que conscientemente rompem com a perspectiva tradicional. Na tela Natureza-morta com Cesta, é possível perceber diferentes perspectivas sendo utilizadas. Enquanto tampo da mesa, o orifício do vaso e a parte superior da cesta são mostrados a partir de um ponto de vista de cima para baixo, a parte lateral destes objetos aparecem vistos quase que no mesmo plano do observador. Cézanne consegue, com isso, uma grande riqueza descritiva, provando que os objetos podem ser descritos por diferentes pontos de observação ao mesmo tempo, um processo puramente intelectual que deixa de lado totalmente a observação impressionista, abrindo caminho para experimentos ainda mais ousados que seriam realizados no século seguinte. Estas descobertas de Cézanne estavam totalmente à margem do interesse que os críticos passaram a ter desde esta época por seus quadros.

A década de 1890

Quando é inaugurada a Torre Eiffel em 1889, um triunfo da arquitetura e da engenharia moderna, o pintor participa da Exposição Universal de Paris, realizada aos pés da torre, no Campo de Marte. Graças à intervenção do influente colecionador Victor Chocquet, seu amigo pessoal, é aprovado o ingresso da obra A Casa do Enforcado na mostra, tela do período impressionista. Apenas um ano mais tarde, ele participa também da influente exposição Les XX em Bruxelas. A popularização de suas obras menos agressivas acompanhava a oficialização do impressionismo como corrente dominante em toda a França e extremamente popular entre os jovens artistas de toda a Europa.

Ao mesmo tempo, a personalidade de Cézanne tornava-se cada vez mais retraída, afastado de todos os artistas com quem travara amizade na juventude. Foi também um período de amadurecimento de seus trabalhos. A década de 1890 iria presenciar uma fase de maturação de sua arte, período em que se situam os trabalhos que hoje são tidos como os mais característicos e significativos de sua atividade.

O isolamento do artista mostrava, também, os efeitos nefastos sobre sua personalidade, tornando-se uma figura instável e desequilibrada. Em uma reunião de amigos ocorrida em 1894 no estúdio de Monet, no dia do aniversário do pintor, conta-se que estavam presentes Clemenceau, Rodin, Gustave Geffroy, Mary Cassatt e Octave Mirbeau. Depois de Cézanne travar uma tensa disputa pessoal com Monet, testando seus conhecimentos artísticos, ele começou a chorar após Rodin lhe cumprimentar com um aperto de mão.

Sua pintura, por outro lado, evoluía a passos largos. Suas conclusões importantes sobre o problema da representação sucediam-se uma a uma. Se na década de 1870 Cézanne, concluindo que a luz destruía os objetos, passou a trabalhar a partir não da luz, mas das formas; seu passo seguinte foi desvendar o problema da unidade formal da tela a partir das cores, que tornavam sua superfície mais plana e uniforme. Na década de 1880, ele subverte a perspectiva tradicional, apresentando o tema pictórico de uma forma nunca vista, dono de grande magnetismo visual. Agora, na década de 1890, Cézanne chegava a uma nova conclusão, talvez a mais decisiva de todas para os rumos futuros da pintura: a redução dos elementos compositivos a meras figuras geométricas, que tornavam a pintura ainda mais coerente e organizada. Duas telas exemplificam perfeitamente estas conclusões, Mulher com Cafeteira e Os Jogadores de Cartas.

Em ambas as telas, as figuras humanas retratadas aparecem como meros elementos pictóricos, claramente destituídos de qualquer qualidade psicológica, tratados com a mesma importância que um jarro ou uma fruta. Na primeira destas obras, se percebe muito bem a simplificação geométrica dos elementos. Em primeiro lugar, a forma triangular da mulher em seu vestido casa perfeitamente com a forma alongada da xícara com o cabo da colher sobre ela, que forma também um triângulo. O formato também alongado e vertical do bule transformado em um cilindro também faz eco com as duas outras figuras. Estas mesmas verticais podem ser vistas nos padrões da porta ao fundo e na superfície uniforme da toalha de mesa. Enquanto o bule é visto totalmente de frente, a xícara ao seu lado apresenta um ponto de vista inclinado, da mesma forma que o tampo da mesa. Da mesma maneira, a mulher, que está sentada, aparece quase como uma figura plana pela suavidade da iluminação. Por fim, o azul do vestido, o verde e vermelho da toalha e o marrom da porta podem ser encontrados repercutindo em todos os demais elementos do quadro, unindo toda a composição em um estudo de surpreendente maturidade analítica, onde cuidadoso e calculado tratamento tridimensional da obra não rompe com a característica essencialmente plana da tela. Uma solução pictórica incrivelmente bem sucedida.

A mesma qualidade possui a tela Os Jogadores de Cartas, onde Cézanne aplica o mesmo tratamento de cores, geometriza com grande radicalismo as personagens e apresenta uma composição ao mesmo tempo equilibrada e dinâmica, onde os elementos que conferem estabilidade ao trabalho estão ligeiramente desequilibrados, o que dá um grande realismo à imagem apesar de sua clara esquematização.

Na década de 1890, aprofundou-se o interesse despertado pela arte de Cézanne entre os jovens artistas. Em 1892, foi publicado por Georges Leconte a transcrição de uma palestra sobre a pintura do artista, realizada em Bruxelas; naquele mesmo ano, o pintor Émile Bonard publicou também um artigo elogioso acerca da pintura inovadora de Cézanne. Em 1894, surge, no movimento artístico de Paris, o notório marchand Ambroise Vollard, figura central no desenvolvimento da pintura moderna francesa, financiando jovens artistas promovendo o modernismo para além das fronteiras francesas. Vollard compra neste ano um conjunto importante de telas de Cézanne. Um ano mais tarde, ele monta a sua Galeria Lafitte em Paris, que sedia a primeira grande exposição dos quadros de Cézanne. Mostra que, a despeito do desinteresse da crítica oficial, foi muito saudada desde os velhos impressionistas até o artistas mais jovens, como Matisse, futuro líder do primeiro grande movimento de vanguarda da pintura do século XX.

O isolamento do artista

A partir de 1895, Cézanne isola-se ainda mais do mundo, talvez percebendo os efeitos negativos do assédio que chegava com a fama. Ele passa longos meses pintando em diferentes cidades do interior francês, em Pontoise, Talloires e outras cidades. É nos últimos anos da década que executa algumas de suas maiores obras-primas, situadas entre as grandes realizações da riquíssima pintura do século XIX. Entre elas, alguns dos temas fundamentais de seus quadros, suas séries de estudos da pedreira de Bibémus, do parque de Château-Noir e a majestosa séria da Montanha Sainte-Victorie, além das grandes Banhistas do início do século XX.

Vale a pena ressaltar também a qualidade a que haviam chegado nesta altura suas naturezas-mortas, que se elevam em suas telas como poderosos monumentos, com verdadeiras qualidades escultóricas e arquitetônicas, extraordinariamente expressivas. Cézanne, que nesta altura já tinha perfeito domínio do problema da distorção de perspectiva, cria verdadeiras obras-primas com frutas e toalhas. Um excelente exemplo deste exuberante teatro pictórico elaborado por ele é a obra Maçãs e Laranjas. Graças aos múltiplos pontos de vista adotados, o tampo da mesa, por onde se desenrola dramaticamente uma toalha branca, toma toda a superfície do quadro. Sobre ela, um prato, uma taça e um jarro florido aparecem em diferentes perspectivas, criando um grande dinamismo e movimento. Os atores principais da tela são as frutas, que surgem grandiosas e cintilantes, em tons vibrantes de vermelho, laranja, amarelo e verde sobre a superfície de cores apasteladas do resto do quadro. Estas maçãs e laranjas parecem adquirir magicamente vida própria, buscando se impor sobre o espectador com uma realidade maior que as frutas do mundo real. A perspectiva é de tal modo insólita, com a mesa desenvolvendo-se diagonalmente pela tela, que mal se consegue perceber qual o ponto de vista principal adotado pelo artista quando executou a obra. Pode-se dizer que o grande triunfo de quadros como este é a perfeita subjugação das formas pelo artista, que as adapta ao tamanho e ao formato de sua tela, sem se limitar ao que “poderia caber” dentro dela, mas, ao contrário, como um bruxo, como um mago das formas, as distorce de tal modo que se inserem em sua composição. Estava já encerrado aí o princípio do cubismo.

É exatamente este tratamento que Cézanne dará às suas telas da Montanha Saint-Victorie, das banhistas ou das rochas do Château-Noir pintadas incansavelmente em incontáveis telas. 

A mudança na recepção de suas obras se faz notar em 1904, quando toda uma sala do Salão de Outono foi dedicada à exposição de 33 telas de Cézanne. Além disso, diferentes jovens artistas já apareciam então em sua residência em Aix buscando conhecer o autor daquelas ousadas pinturas que não tinham nenhum paralelo entre os pintores modernos. Nos anos seguintes, não apenas suas obras continuaram a ser expostas no Salão Oficial, como ganhavam periodicamente outras mostras alternativas, como a de suas aquarelas organizada por Vollard em 1905. Aparentemente, o isolamento a que o pintor se impôs no momento em que suas obras eram largamente exaltadas preservaram sua força e integridade como artista.

Este ano, em particular, marcava um dos mais importantes acontecimentos da arte do século XX, que foi o aparecimento do primeiro grupo da vanguarda radical que marcaria todo o século. Eram os fauves, como ficariam conhecidos, grupo de audaciosos artistas liderados por Matisse e que buscavam levar a novos extremos os caminhos trilhados pela arte francesa até aí. Abandonando a descrição fiel da realidade, eles passaram a utilizar cores agressivas, em violentos contrastes e vibrações que tinha um sentido puramente sensual, dando um passo além no processo de ruptura com a pintura descritiva da realidade que era ainda a base da pintura até aí. De certa forma, Cézanne estava também por trás destas novas criações, dado ter ele desenvolvido uma das teorias mais influentes de aplicação das cores na tela neste período, cujo paralelo só pode ser encontrado em Gauguin e seus discípulos, os Nabis.

O encerramento da carreira de Cézanne se dá em meio a estas novas revoluções da pintura, falecendo de pneumonia em 1906, em sua residência em Aix. Não se passaria nem um ano até uma dupla de jovens artistas, Georges Braque e Pablo Picasso, descobrissem as magníficas conclusões de Cézanne acerca da estrutura geométrica da natureza e passassem a explorar de maneira radical e intensiva estas conclusões, levando-as a novos extremos que revolucionariam completamente a técnica da pintura do século XX. A obra de Cézanne foi a pedra de toque desta revolução, cujo ponto final foi a descoberta da influente pintura abstrata geométrica.