08.11.2023

Demagogia, identitarismo, a serviço do futebol força imperialista

Copa do Mundo Feminina

Henrique Áreas de Araujo

Toda a propaganda forçada a favor do futebol feminino tem origem no interesse do imperialismo em promover um esporte onde quem domina são os ricos

A Copa do Mundo de Futebol Feminino é um campeonato recente. A primeira edição ocorreu na China, em 1991. A edição que ocorre este ano, sediada na Austrália e na Nova Zelândia é a de número nove.

A Copa é tão recente quanto é recente a prática do futebol pelas mulheres, ao menos na maioria dos países. Diferente do futebol masculino, que mais do que um esporte tornou-se um fenômeno cultural universal ainda nas primeiras décadas do século XX, as mulheres, por uma série de fatores sociais, políticos e culturais, não praticam amplamente o esporte.

Apesar desse atraso, seria natural que o esporte mais popular do mundo passasse a ser praticado pelas mulheres, a ponto de ser possível a organização, pela FIFA, de um campeonato mundial. Passados 32 anos desde a primeira Copa, é inegável que o futebol feminino evoluiu, que há muito maior financiamento e estrutura hoje, embora a diferença em relação ao futebol masculino seja gigantesca.

Com o destaque recebido pelo futebol feminino com a Copa deste ano, muitas reportagens e artigos apareceram mostrando os obstáculos enfrentados pelas mulheres para a prática do esporte. A prática feminina do futebol foi proibida na Inglaterra em 1921, na Alemanha em 1955 e no Brasil em 1941, apenas para citar alguns países com tradição no futebol. Essas proibições afetavam mais a organização da prática do futebol feminino do que propriamente reprimiam as mulheres por jogar futebol. Tanto que, em todos esses países, incluindo o Brasil, apareceram, dispersamente, times femininos e mulheres praticando o futebol. Mas, oficialmente, as federações não realizavam campeonatos, os clubes não constituíam times, em suma, não havia nenhum incentivo para tal prática. Apenas durante a década de 1970 as federações foram, aos poucos, revogando as leis proibitivas e começaram a aparecer campeonatos.

Essa política, embora seja uma causa importante para explicar o pouco desenvolvimento do futebol feminino, não é a única causa e talvez nem seja a principal.

O que aconteceu foi que as mulheres, por motivos sociais e culturais, não eram incentivadas a jogar futebol. Uma série de circunstâncias afastaram as mulheres da prática desse esporte. O fato de terem existido mulheres que jogavam, times femininos montados, não significa necessariamente que o esporte seria popular entre as mulheres.

A demagogia identitária ignora os fatos e sua explicação real por uma análise moral do problema. Se a condição de inferioridade da mulher na sociedade, tratada como sendo de segunda classe, colaborou para afastar as mulheres do futebol, isso deve ser visto de forma objetiva. Não é possível mudar a história apenas fazendo um julgamento moral dela. É o que o identitarismo, repetindo a propaganda imperialista, fez durante todo o evento da Copa do Mundo até aqui.

Identitarismo forçou a barra

O identitarismo tornou-se a ideologia oficial do imperialismo. Em todos os jornais, em todas as propagandas, em qualquer empresa não falta demagogia. Portanto, é o período mais propício para uma boa divulgação do futebol feminino.

Às vésperas da Copa do Mundo, começaram a aparecer uma série de artigos defendendo o futebol feminino. Até aí, tudo bem. Mas não era uma defesa normal, apontando as dificuldades e mostrando o que se poderia fazer para melhorar. O que foi colocado em marcha foi uma campanha de assédio moral contra a população, que nas entrelinhas queria dizer: “quem não assistir à Copa, é machista”.

A campanha foi tão insistente que era como se a população fosse obrigada a assistir aos jogos, coisa que não aconteceu.

A audiência da Copa de 2023 foi bem maior do que a das copas anteriores, embora ainda nem se compare ao nível de audiência da Copa do Mundo Masculina.

Apenas na fase de grupo, a Globo e seu canal pago, o Sportv, tiveram uma audiência de 50 milhões de espectadores.

A título de comparação, somente nos jogos da Seleção Brasileira da Copa do Mundo do Catar, em 2022, a Globo teve uma audiência média de 70 milhões de espectadores em cada um dos cinco jogos. Isso sem contar a mobilização de pessoas gerada pelos jogos da Seleção masculina, coisa que nem remotamente aconteceu na Copa feminina. Sobre o caráter dessa mobilização, falaremos mais adiante.

Não há dúvida, porém, que a audiência do futebol feminino aumentou, o que mostra que houve um aumento do interesse do público. Mesmo que esse interesse tenha sido em boa parte impulsionado pela propaganda em torno do tema. O importante, no entanto, não é ignorar esse aumento de público, mas mostrar que a comparação que o identitarismo tentou fazer com o futebol masculino é indevida.

Essa comparação servia para atacar a Seleção masculina, jogando uma contra a outra. Na imprensa e em alguns meios esquerdistas, chegou-se a falar que o futebol feminino era superior ao masculino. Foi criado um mundo de fantasia onde o futebol feminino seria tão importante quanto o masculino.

Ao forçar uma realidade que não existe, a burguesia acabou gerando um efeito contrário. Ao invés de criar um clima verdadeiramente favorável a que as pessoas assistissem aos jogos, o assédio moral acabou gerando uma indisposição de muitas pessoas. Para explicar melhor esse efeito, vale uma analogia com a política. Quanto maior a polarização política para um lado, maior a polarização para o extremo oposto. Assim, enquanto a burguesia e os identitários forçavam a barra tentando mostrar que o futebol feminino era a coisa mais importante da história do mundo, um setor da população era jogado ao outro extremo, ou seja, de negar qualquer importância das mulheres nesse esporte.

A Seleção Brasileira

O futebol é o esporte mais popular do mundo. No Brasil, ele é mais do que isso: é parte da cultura nacional. Os brasileiros inventaram um novo futebol, o futebol arte, que se tornou um fenômeno cultural.

As mulheres brasileiras, embora nem sempre tenham sido incentivadas a jogar, também acompanham essa cultura. Naturalmente, as jogadoras brasileiras adquiriram as características do futebol arte e isso as fez jogadoras mais talentosas do que as demais. Mas isso não é o suficiente.

Pelo seu caráter tardio, o futebol feminino brasileiro ainda não conseguiu atingir o mesmo nível do masculino. É difícil saber, inclusive, se será possível que isso aconteça e explicaremos por quê.

O futebol – e quando dizemos “futebol” estamos nos referindo ao fenômeno cultural representado pela modalidade masculina – é produto de uma evolução de décadas. Porém, essa evolução não é semelhante à de qualquer outro esporte.

O futebol chegou ao Brasil no final do século XIX. Nas primeiras décadas do século XX, ele era um esporte praticado principalmente por setores da burguesia e da classe média alta. Gradualmente, no entanto, as camadas populares começaram a aderir ao futebol. Enfrentando a resistência da elite econômica, os jogadores das camadas populares tinham que desenvolver um futebol mais habilidoso que os tornasse superior dentro de campo. Essa habilidade era uma espécie de transposição da ginga da capoeira e das danças populares para o campo.

Fica claro que a popularização do futebol no Brasil é produto de uma luta social intensa por parte das camadas pobres, majoritariamente negras, para se afirmarem no esporte. Por outro lado, essa luta e a vitória das camadas populares acabaram criando uma nova cultura popular, uma nova arte, uma maneira nova de jogar futebol, diferente daquela que os europeus haviam criado.

Foi essa maneira nova de jogar futebol, posteriormente exportada para o resto do mundo, que foi chamada de futebol arte ou simplesmente futebol brasileiro.

Para ser exportado e adotado pelos demais países, o futebol brasileiro enfrentou uma nova luta. Agora não era mais uma luta entre as camadas populares contra a burguesia e a classe média brasileiras; era a luta do povo brasileiro contra o domínio político e econômico dos países europeus, da burguesia imperialista. Da mesma maneira que os pobres e negros conseguiram impor seu futebol no Brasil, o futebol brasileiro conseguiu se impor diante dos ricos europeus. O Brasil se tornou o maior campeão e o país com os melhores números disparadamente em todos os requisitos importantes.

Essa luta pode ser resumida da seguinte forma: o futebol arte contra o futebol força, ou seja, o futebol transformado em expressão artística contra um futebol primitivo onde predomina a simples força física.

Pelo breve resumo de como o futebol se estabeleceu no País, é possível perceber que estamos diante de uma luta que durou um século e dura até hoje. O Brasil tornou-se o país do futebol e o imperialismo, ao mesmo tempo que procura impedir esse domínio dentro de campo, tenta lucrar com os jogadores brasileiros.

Como dissemos, embora as mulheres brasileiras tenham incorporado as características do futebol brasileiro, fato é que pelo caráter recente da modalidade, o futebol feminino tem muito mais dificuldade de atingir um nível capaz de competir com os europeus.

Daqui, decorrem duas questões importantes: 1) Esse nível do futebol feminino só será elevado com muito investimento na modalidade, com melhoria da estrutura e incentivo à prática do esporte pelas mulheres; 2) Fica claro pela história do futebol, um processo cultural de quase um século, que não é possível simplesmente impor artificialmente que o futebol feminino tenha o mesmo significado para o povo do que o futebol masculino; pelo simples fato de que a cultura não se impõe artificialmente.

Diferente do que alguns identitários histéricos falam, o gosto cultural pelo futebol masculino não tem nada a ver, absolutamente nenhuma relação, com um suposto “machismo” do povo ou o “domínio do patriarcado” ou qualquer besteirol da fraseologia identitária. Isso fica claro se compararmos o futebol masculino com outras modalidades de futebol.

Vejamos o caso do futebol de salão. Inegavelmente, o Brasil é dominante também no chamado futsal, tendo os jogadores mais habilidosos do mundo. Pela facilidade devido ao tamanho das quadras, o futsal, inclusive, é amplamente praticado pela população. O brasileiro adora assistir a jogos de futebol de salão. Mas, apesar de tudo isso, não há a mesma paixão envolvida se compararmos com o futebol de campo. E por quê? Justamente porque o problema é cultural e não meramente esportivo. O mesmo poderíamos dizer sobre o futebol de areia, onde o Brasil também é dominante.

Ou seja, não é um problema de “machismo”, é um problema cultural. Da mesma maneira que o brasileiro adora acompanhar o futebol de salão, uma modalidade diferente, ele gosta de assistir ao futebol feminino. Mas em nenhum desses casos a sua relação com o esporte é passional como no futebol de campo masculino.

Explicada essa questão, é preciso mais uma consideração muito importante sobre o futebol feminino. Pelas características históricas e culturais que citamos acima, o predomínio no futebol feminino é o do futebol força.

Futebol feminino: o predomínio da força física

Parece contraditório, mas não é. O futebol feminino é uma modalidade esportiva onde prevalece a força bruta. Justamente por não ter passado pelas etapas de luta em que o futebol arte conseguiu se impor diante do futebol força, o futebol feminino ainda é primitivo.

O que prevalece entre as jogadoras mulheres é o porte atlético, o tamanho, a força, a preparação física. Para quem conhece um pouco de futebol, basta assistir aos jogos e facilmente se percebe essa característica. No futebol masculino há muitos jogadores, principalmente latino-americanos, com baixa estatura e mais franzinos. Isso não quer dizer que esses jogadores sejam mal preparados fisicamente, mas não são jogadores cuja força bruta é a característica dominante. Já no futebol feminino, a esmagadora maioria das jogadoras são atletas com um porte físico mais avantajado. A maneira de jogar também denuncia essa característica, os jogos são nitidamente mais duros e engessados, com pouquíssimas jogadas de criatividade.

As jogadoras brasileiras, mais franzinas, são as únicas que fogem dessa característica e aí é que está o problema. Justamente pelo problema histórico que falamos, há muita dificuldade por parte das brasileiras de impor o seu jogo.

Para quem ainda não se convenceu, vejamos quais são os países que dominam o futebol feminino: Estados Unidos, com quatro títulos mundiais, Alemanha, com dois, Noruega e Japão com um título cada um.

A primeira coisa que salta à vista é que justamente os EUA, país com pouca ou quase nenhuma tradição no futebol, tenha a maioria dos títulos. O mesmo se pode dizer de Noruega e Japão, dois países com um futebol sem grande tradição. O único país campeão que de fato é uma potência no futebol é a Alemanha.

Quais são as características comuns desses países campeões da Copa Feminina: são todos países imperialistas, ou seja, potências econômicas. Daí, podemos concluir com tranquilidade que o que pesa no futebol feminino não é a tradição da prática do futebol, mas o poder econômico. Vejam que os países sul-americanos, Brasil, Argentina e Uruguai, que acumulam sozinhos 10 títulos mundiais na Copa do Mundo masculina, sequer conseguem atingir boas colocações na Copa Feminina. O Brasil, de longe a seleção mais competitiva dos países pobres, conseguiu um vice-campeonato em 2007 e um terceiro lugar em 1999, e foi só!

O poder econômico só é capaz de dominar amplamente no futebol se há o predomínio do futebol força. Isso quer dizer que a riqueza do país é decisiva para o sucesso das respectivas seleções femininas e isso ocorre justamente porque estamos tratando de uma modalidade esportiva como qualquer outra, ou seja, onde a simples preparação física se sobressai diante de qualquer iniciativa criativa. Nesse sentido, o poder econômico é decisivo, pois possibilita melhor preparação dos atletas, como na maioria dos esportes olímpicos.

Nesse sentido, o futebol feminino está atrás, inclusive, de outros esportes coletivos, como o vôlei, onde o poder econômico tem muito mais dificuldade de imperar.

Os números contrariam frontalmente os preconceitos dos identitários. O futebol feminino é o domínio do futebol da força bruta, contra a criatividade e a arte.

A campanha identitária a serviço do imperialismo

Esse domínio absoluto dos países imperialistas é a real explicação da intensa propaganda demagógica que foi feita antes e durante a Copa do Mundo feminina. Como sempre, não tem nada de defesa da mulher, não tem nada de valorização das mulheres no futebol, o que tem é muito dinheiro.

O domínio dos norte-americanos denuncia toda a operação. O país imperialista mais poderoso do mundo sabe da paixão que o futebol desperta em todos os povos. O problema é que os Estados Unidos nunca serão uma verdadeira potência no futebol, tendo que se contentar em ser meros coadjuvantes justo no esporte mais popular do mundo e que gera mais lucros.

A propaganda intensa a favor do futebol feminino tem origem justamente nos Estados Unidos. É uma tentativa de fazer com que essa modalidade consiga ao menos chegar mais próximo da popularidade do futebol masculino. A operação é muito complicada, mas os norte-americanos estão dispostos a pelo menos aumentar seus lucros.

A maior popularidade do futebol feminino é uma fatia de mercado internacional que os norte-americanos podem explorar.

As empresas lucram muito com a paixão do futebol: a venda de camisas das seleções campeãs do mundo, dos grandes clubes europeus e latino-americanos, chuteiras, bolas, jogos de vídeo game e uma série de produtos ligados ao futebol. A falta de tradição dos norte-americanos acaba dificultando sua entrada nesse mercado mundial, embora eles estejam presentes.

O futebol feminino é a oportunidade para aumentar as vendas de camisas femininas, materiais específicos para mulheres, transmissões dos jogos, valorização dos times e jogadoras norte-americanas, etc. Isso vale também para os demais países imperialistas que, com o futebol feminino, conseguem livrar-se da pedra no sapato que são os países pobres no futebol masculino.

A demagogia identitária, como sempre, serve aos interesses mais escusos do imperialismo mundial. Em nome da defesa da mulher e dos oprimidos, o identitarismo está favorecendo a maior máquina de opressão que o mundo já viu.

É possível quebrar o esquema imperialista?

A luta entre as tendências criativas e o futebol força é constante. O imperialismo, com dificuldades para jogar como os brasileiros, tenta impor, através do poder econômico, seu futebol. O “natural” seria um domínio absoluto do futebol brasileiro sobre o europeu. A tendência é que o futebol arte, ou seja, o futebol moderno que superou o primitivismo dos primeiros passos do esporte nascido na Europa, domine a prática do esporte. O problema é que o imperialismo exerce sua força reacionária sobre todas as formas avançadas da expressão da humanidade. O imperialismo não pode permitir que um país pobre como o Brasil tenha um domínio tão absoluto no esporte mais popular e mais lucrativo do mundo.

No futebol feminino, como vimos, quem domina é o imperialismo, é o futebol primitivo, antiquado, o futebol da força bruta contra a criatividade.

É difícil afirmar que a luta que se travou durante o século XX para a afirmação do futebol arte sobre o futebol força irá se reproduzir no caso do futebol feminino. O mais provável é que isso não ocorra, inclusive porque as condições históricas são outras.

De qualquer modo, a habilidade das jogadoras brasileiras mostra que é totalmente possível que as mulheres se desenvolvam nessa arte. Não é por acaso que a melhor jogadora do mundo de todos os tempos, Marta, seja brasileira. É a prova de que as mulheres brasileiras estão assimilando a maneira de jogar brasileira, afinal, ela é parte da cultura do país.

Marta, a melhor jogadora de todos os tempos, demonstração do desenvolvimento do futebol feminino.

Como aconteceu no masculino, o Brasil é o país capaz de furar o esquema imperialista no futebol feminino. Mas justamente por se tratar de condições históricas diferentes, em que o imperialismo é ainda mais reacionário, essa luta é bastante desvantajosa para os países pobres.

Nesse sentido, a primeira condição para o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil é muito investimento. As jogadoras brasileiras precisam de estrutura que possibilite fazer frente à força bruta das seleções imperialistas. Para isso, é preciso muito dinheiro. Ao mesmo tempo, é preciso incentivar a prática do futebol entre as mulheres, o que possibilitará o desenvolvimento da característica tipicamente brasileira: a habilidade, a criatividade, a ginga.

A demagogia não enche a barriga de ninguém e não ganha jogo de futebol. E como ficou claro, a enorme demagogia identitária não foi capaz sequer de fazer com que o brasileiro amasse o futebol feminino como ama o masculino. Nem é possível saber se isso será possível.

Antes de tentar mudar artificialmente a cultura do País, é preciso uma política correta, que passa por analisar concretamente os problemas envolvidos. Fazer discurso demagógico não fará o futebol feminino se desenvolver.

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