“Verificou-se que o sr. Recep Tayyip Erdogan recebeu 51,91% dos votos na Turquia, e o sr. Kemal Kılıçdaroglu, 48,09%. No exterior, 4.986 das 5.657 urnas foram abertas, e uma taxa de abertura de 88,14% foi registrada. O sr. Recep Tayyip Erdogan recebeu 59,80% dos votos no exterior, e o sr. Kemal Kılıçdaroglu, 40,20% dos votos. Ao todo, considerando as votações em território nacional e no exterior, 196.744 de 197.871 urnas foram abertas, e uma taxa de abertura de 99,43% foi registrada. O sr. Recep Tayyip Erdogan recebeu 52,14% dos votos e o sr. Kemal Kılıçdaroglu, 47,86%
O sr. Recep Tayyip Erdogan recebeu 27.513.587 votos e o sr. Kemal Kılıçdaroglu, 25.260.109 votos. O resultado não mudará, mesmo que todos os votos restantes sejam computados para qualquer um dos candidatos presidenciais. Considerando-se esses dados parciais, verificou-se que o sr. Recep Tayyip Erdogan foi eleito presidente da República da Turquia”.
Foi assim que Ahmet Yener, presidente do Conselho Eleitoral Supremo da Turquia (YSK), anunciou para o mundo, em coletiva de imprensa, o desfecho das eleições presidenciais no país euroasiático.
O resultado não causou grandes surpresas. Conforme descrito na edição anterior do Dossiê, o mandatário turco já havia conquistado 49,50% dos votos, dependendo de apenas 0,5% do eleitorado para consagrar-se presidente reeleito. Mesmo assim, não foi uma vitória folgada.
Pelo contrário, as eleições ocorreram em meio a uma grande polarização e permaneceram tensas até o anúncio final. De lá para cá, não apareceram indícios expressivos de que a vitória de Erdogan será contestada de imediato. No entanto, pequenos agrupamentos, como o Partido Democrático dos Povos (HDP) e o Partido da Esquerda Verde (YSP) já declararam que as eleições teriam sido “sujas”.
“Testemunhamos uma eleição injusta, marcada por violações das regras democráticas básicas, que ocorreu sob as condições repressivas do regime de um homem só”, declarou İbrahim Akın, do YSP (HDP and Green Left Party: We made an effort to open the door to democracy, HDP Europe, 29/5/2023). Akin sequer esconde que torcia pela vitória do candidato do imperialismo na Turquia, Kılıçdaroglu: “expressamos e defendemos que o principal objetivo dessas eleições era mudar o regime” (idem).
A imprensa capitalista assumiu um papel semelhante. Notoriamente desmoralizada, uma vez que havia apostado todas as fichas em uma vitória de Kılıçdaroglu no primeiro turno, inclusive manipulando as pesquisas eleitorais, decretou que a eleição de Erdogan foi a vitória da “autocracia” contra a “democracia”. O tom derrotista do imperialismo pode ser visto no artigo “A autocracia de Erdogan venceu a democracia na Turquia”, assinado por Guga Chacra, um réptil dos capitalistas norte-americanos:
“Apesar de um entusiasmo semanas atrás diante de uma possível vitória com a união da oposição, a democracia fracassou na tentativa de derrotar a autocracia na Turquia” (A autocracia de Erdogan venceu a democracia na Turquia, Guga Chacra, O Globo, 29/5/2023). Guga Chacra prossegue, então, fazendo as mesmas acusações que a “esquerda” turca – esquerda essa que na verdade é um papagaio do imperialismo: “apesar de a votação ter sido transparente, o processo eleitoral não foi justo. A oposição sofreu uma série de restrições e teve uma fração do espaço do presidente na mídia tradicional”. O que o articulista não diz, no entanto, é que as eleições sofreram uma influência gigantesca dos serviços de inteligência norte-americanos, muito mais corruptos, sujos e poderosos que qualquer presidente no mundo.
Essa indisposição contra Erdogan pode – e provavelmente irá – levar, a médio prazo, a uma revolução colorida – isto é, a um golpe de Estado. No momento, no entanto, não há sinais de que isso acontecerá de imediato.
A revista britânica The Economist, um dos principais porta-vozes do imperialismo a nível mundial, adotou o mesmo tom amargurado, porém aparentemente conformado que Guga Chacra:
“Certamente não foi justo. Nem totalmente gratuito. Mas, goste ou não, a vitória em 28 de maio de Recep Tayyip Erdogan nas eleições presidenciais da Turquia é um fato. Nos próximos cinco anos, a Turquia, a Europa e o resto do mundo terão de lidar com um populista espinhoso e autoritário. Isso é uma má notícia em muitas frentes: economicamente, democraticamente e regionalmente. E, no entanto, os pragmatistas têm o dever de procurar frestas de luz na escuridão” (How to make the re-election of Recep Tayyip Erdogan less bad news, The Economist, 31/5/2023).
A declaração da publicação britânica é de quem reconhece a derrota e irá, agora, se concentrar em reorganizar suas tropas para voltar a investir contra o inimigo.
Do lado oposto, os povos oprimidos de todo o mundo celebraram a derrota do candidato do imperialismo neste importante país. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, uma das principais lideranças na rebelião dos países contra a dominação imperialista, declarou: “a vitória eleitoral foi um resultado natural do seu trabalho altruísta como chefe da Turquia e uma clara evidência do apoio do povo turco aos seus esforços para fortalecer a soberania do Estado e conduzir uma política externa independente”. O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, por sua vez, colocou-se à disposição para uma parceria “na cooperação global pela paz e no combate à pobreza”.
Outro dado muito importante da vitória de Erdogan foi a imensa repercussão que o Partido da Causa Operária ganhou ao comemorar a derrota do imperialismo. As publicações do Partido tiveram um alcance de milhões de pessoas e renderam um agradecimento dos próprios turcos, mostrando que a posição contrária ao imperialismo tem ganhado cada vez mais apoio do conjunto da população.
Posição privilegiada
Qualquer derrota do imperialismo, por princípio, merece ser comemorada pelos oprimidos. Afinal, quanto mais enfraquecido estiver, mais dificuldade terá de dominar os países e, assim, mais fácil será para que os povos se rebelem. Mesmo em um país secundário, uma derrota parcial do imperialismo pode causar consequências espetaculares. O caso do Afeganistão é um importante exemplo disso: a expulsão das tropas norte-americanas inaugurou uma nova onda de enfrentamentos dos países atrasados com o imperialismo.
Acontece que a Turquia, contudo, não é um país secundário, mas um dos mais importantes do planeta. Antes de tudo, é preciso considerar a posição geográfica do país. A Turquia tem uma posição tão privilegiada que é até difícil mostrá-la em um único mapa.
O primeiro mapa, que apresenta uma visão mais distante dos continentes europeu, africano e asiático, já mostra a Turquia como um país em destaque, uma vez que fica exatamente no centro da região. É, portanto, um território fundamental na ligação entre esses continentes. Para enviar armamentos e alimentos ou mesmo para invadir um país, partindo da África para a Europa, da Europa para a Ásia ou da África para a Ásia, a Turquia é uma das poucas rotas possíveis.
A essa questão de ordem puramente geográfica, soma-se o problema da configuração política da região. Podemos dividir o primeiro mapa em quatro grandes regiões: a Europa Central, que é a sede do imperialismo europeu, o Oriente Médio, o Leste Europeu e o Norte da África. Ainda que não faça fronteira direta, a Turquia também está bem próxima da chamada Ásia Central. Cada uma dessas regiões, conforme discutiremos, apresenta uma série de características importantes para a luta de classes mundial.
Agora, passemos a examinar mais de perto o território turco. Mais de 90% das terras turcas pertencem à Ásia, sendo a maior região do país a Anatólia. A Trácia, separada da Anatólia pelo estreito de Bósforo, é a porção turca que pertence à Europa.
No continente europeu, a Turquia tem como vizinhos a Grécia e a Bulgária. Já em sua porção oriental, o país governado por Recep Erdogan faz fronteira com várias nações distintas. A Turquia é o único país do mundo a ter como vizinhos os três países do Cáucaso: Azerbaijão, Armênia e Geórgia. Além disso, a Turquia faz fronteira com Irã, Iraque e Síria.
Os estreitos de Dardanelos e Bósforo, ambos pertencentes ao território turco, dão ao país de Erdogan o monopólio do acesso ao Mar Negro. Não é possível navegar nas águas dessa importante região sem passar pelos estreitos turcos. Quem acessar o Mar Negro, por sua vez, ver-se-á diante da oportunidade de acessar os territórios da Bulgária, da Romênia, da Ucrânia, da Rússia, da Crimeia (pertencente à Rússia) e da Geórgia.
Durante a operação russa na Ucrânia, o regime de Kiev chegou a solicitar que a Turquia impedisse a navegação da marinha de Vladimir Putin sobre o Mar Negro (Turquia diz que não pode impedir que navios de guerra russos acessem o Mar Negro, CNN, 22/2/2022).
Além das vantagens geográficas marcantes, a Turquia também conta com um grande poder militar. O país foi o segundo convidado a entrar na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), aproveitando-se disso para modernizar as suas tropas.
De acordo com a classificação da Global Firepower, a Turquia teria o 11º exército mais poderoso do planeta, com 425 mil soldados ativos, um orçamento anual de 25 bilhões de dólares, uma força aérea com 1.065 aeronaves, 112 mil veículos blindados de combate e 154 forças da frota da marinha. Fica atrás de apenas três países europeus: Reino Unido, França e Itália (Os 25 exércitos mais poderosos do mundo em 2023, Maiores e melhores).
Região vital
Agora, analisemos cada uma das regiões com as quais a Turquia tem ligação.
O Oriente Médio, como se sabe, vive hoje uma das maiores crises políticas do mundo. Uma crise que, embora a grande imprensa procure ocultar, é uma crise da dominação do imperialismo na região. Toda a política de dominação estabelecida na segunda metade do século XX, com a ascensão do Estado de Israel e com a derrota do movimento nacionalista de Gamal Abdel Nasser está se desmanchando.
O primeiro grande baque sofrido pelo imperialismo na ordem estabelecida no Oriente Médio foi a revolução iraniana de 1979, que pôs fim à ditadura pró-imperialista do Xá Reza Pahlavi. Embora tenha aberto uma crise gigantesca, o Irã permaneceu relativamente isolado e ainda sofreu as consequências da Guerra Irã-Iraque, impulsionada pelo imperialismo para fazer a revolução refluir.
Após a crise de 2008, começou um rápido deslocamento dos países do Oriente Médio para uma posição de tipo nacionalista e anti-imperialista, alinhando-se, assim, ao Irã. O caso mais marcante foi o do Egito, onde a Irmandade Muçulmana acabou chegando ao poder, tendo sido necessário um golpe de Estado do imperialismo para destituí-la. Outro caso muito significativo é o da Arábia Saudita, que vem se aproximando cada vez mais dos chineses e russos. Recentemente, o país pediu a entrada no bloco comandado pelos países que estão se rebelando contra o imperialismo, os BRICS.
A aproximação da Arábia Saudita de chineses e russos tem servido inclusive para que a relação dos árabes com os demais países do Oriente Médio, marcada por muitos conflitos, evolua em um sentido positivo. Com o alinhamento saudita aos BRICS, a Arábia Saudita restabeleceu suas relações com a Síria e com o Irã. Outra decisão significativa foi a da Arábia Saudita querer encerrar a guerra contra o Iêmen.
Iêmen e Síria, por sua vez, são países que mostram não só a tendência à rebelião contra o imperialismo, mas também um aspecto central da atual situação política internacional: a incapacidade do imperialismo de conter os países que se opõem à sua dominação. Mesmo tendo o exército mais poderoso do planeta, contando com seus aliados da União Europeia e lançando mão de mil e um artifícios para a desestabilização de regimes, os Estados Unidos falharam miseravelmente em depor os governos sírio e iemenita.
No Líbano, a derrota do imperialismo é marcada principalmente pela incapacidade de conter o Hezbolá, dono de um dos maiores exércitos paramilitares do planeta.
Outro país bastante pequeno, mas que também é testemunha da fraqueza do imperialismo, é o Catar, um país minúsculo, com uma pequena população e sem participação efetiva no controle da economia mundial, apesar de ser bastante rico pela exploração de petróleo. O país, que controla a rede Al Jazeera, tem sido um dos principais defensores dos palestinos, a ponto de sofrer uma intensa campanha de calúnias por parte do imperialismo durante a Copa do Mundo de 2022.
Por fim, um caso muito surpreendente é o do Estado de Israel, um enclave imperialista imposto pelo imperialismo justamente para servir como uma polícia contra a rebeldia dos países do Oriente Médio. Ao ver as movimentações pró-Rússia de seus vizinhos, o regime israelense decidiu, nos últimos meses, tentar se alinhar aos países do BRICS, temendo que a rebeldia dos países do Oriente Médio possa levar até mesmo à sua extinção física.
Como fica claro, em questão de anos, o imperialismo perdeu completamente o controle do Oriente Médio. A Turquia, fazendo fronteira direta com alguns desses países e sendo influente em todos eles está, portanto, em uma posição muito importante para que essa rebelião avance. A mera recusa em prestar apoio militar para o imperialismo conter uma revolta em qualquer um desses países pode ser mais do que suficiente para garantir uma derrota importante dos Estados Unidos na região.
No Leste Europeu, a situação de crise é tão explícita quanto no Oriente Médio. Neste exato momento, ocorre lá a guerra mais importante do mundo: o conflito entre Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), ocorrida no território ucraniano. A operação militar russa é uma reação à política agressiva do imperialismo, de implementar bases militares nos países que fazem fronteira com o país governado por Vladimir Putin. Essa política agressiva, no entanto, não deixa de ser uma política defensiva.
O golpe de Estado na Ucrânia, dado em 2014, foi resultado justamente da boa relação que a Ucrânia, segundo maior país da Europa, tinha com a Rússia. A Bielorrússia, outro país importante do Leste Europeu, tem intensificado seus laços com Putin, inclusive recebendo a promessa de que este enviaria armas nucleares.
Uma situação que está em uma crise muito aguda também é a Ásia Central, região que não tem fronteira direta com a Turquia, mas é bastante próxima. Para ir da Turquia à Ásia Central, basta atravessar o Irã e, assim, chegar ao Turcomenistão ou ao Afeganistão. Outra opção é atravessar os países do Cáucaso, que são banhados diretamente pelo Mar Cáspio, pertencente à Ásia Central.
Os dois mais importantes países da Ásia Central estão completamente rebelados contra o imperialismo. Em 2021, o Afeganistão sofreu um processo insurrecional, em que o Talibã, grupo político que atualmente controla o país, expulsou as tropas norte-americanas de seu território. Essa foi uma das derrotas mais humilhantes que o imperialismo sofreu em sua história, sendo um verdadeiro ponto de inflexão na luta dos países oprimidos contra os norte-americanos e europeus. A vitória Talibã, inclusive, pode ter sido fundamental para encorajar Putin a realizar a operação militar contra a Ucrânia.
O Cazaquistão, por sua vez, também tem estreitado seus laços com Vladimir Putin, ao ponto de ter sofrido uma tentativa de golpe de Estado em 2022. Em declaração recente, o presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, afirmou, em defesa do Cazaquistão, que ninguém interviria no país porque o governo Putin iria garantir a defesa nuclear de quem se aproximasse da Rússia (Lukashenko oferece armas nucleares a países que se aliarem à Rússia, Poder 360, 29/5/2023).
Os países do Norte da África seguem o mesmo caminho. O Egito, país que serve como principal elemento de ligação entre o Norte da África e o Oriente Médio, apesar de estar sob uma ditadura imposta para conter a Irmandade Muçulmana, já começou a se reunir com os países dos BRICS e seus aliados, indicando uma ruptura. No Sudão, outro país onde o imperialismo interveio fortemente, a crise explodiu em uma guerra civil. A África, como um todo, tem procurado se alinhar à Rússia e à China, criticando abertamente o presidente francês Emmanuel Macron e sendo apoiada pelas milícias do Grupo Wagner, aliado de Vladimir Putin.
O que fará Erdogan?
Muito em função de sua posição privilegiada, a Turquia sempre procurou ter uma política equilibrada em relação aos conflitos. Uma posição muito favorável ao Oriente Médio e hostil à Europa, por exemplo, poderia desencadear em uma série de reações dos países europeus à Turquia, e vice-versa. Procurar uma relação relativamente “neutra” é até natural para a nação turca.
Essa postura pôde ser vista claramente durante a operação militar especial russa. Ao mesmo tempo em que a Turquia é parte da OTAN – e, portanto, uma ameaça militar ao território russo –, o país se recusou a enviar armamentos para a Ucrânia, evitando, assim, tomar partido na briga com dois gigantes países com quem divide o Mar Negro.
A grande importância da vitória de Erdogan, neste momento, é justamente o fato de que, diante de um grande acirramento de todos os conflitos em todas as regiões interligadas com a Turquia, o presidente turco, ciente da fraqueza do imperialismo, pende para o bloco da Rússia e da China.
O que Erdogan fará nos próximos meses, portanto, poderá ser decisivo para uma rebelião conjunta de toda a região ao seu redor.