Conhecido como “conde vermelho” por sua adesão à luta pelo socialismo e sua ligação com o Partido Comunista Italiano, stalinista, no qual via materializada a luta da classe operária socialista, o cineasta italiano Luchino Visconti tornou-se no decorrer de 30 anos, e com pouco mais de uma dezena de filmes, um dos mais extraordinários diretores do cinema mundial. Sua obra insere-se em um dos períodos mais conturbados da história recente europeia, em particular da história do seu próprio país, iniciada no momento de desagregação do governo de Mussolini, nos anos finais da Segunda Guerra.
Esta gigantesca crise social produziu não apenas o cinema magistral de Visconti, mas moldou também uma das mais importantes gerações de diretores da história do cinema, grandes realizadores como Vittorio De Sica, Roberto Rossellini, Giuseppe de Santis, Alessandro Blasetti, Luigi Zampa, Michelangelo Antonioni, Pier Paolo Pasolini, Frederico Fellini, Ettore Scola, Dino Riso e Mario Monicelli, entre outros. Suas obras teriam impacto não apenas na Itália, mas impulsionariam um verdadeiro movimento internacional do cinema, influenciando diretores e roteiristas em todo o mundo, dentro e fora da Europa.
De todos estes diretores, Luchino Visconti destaca-se como o maior dos estetas do cinema italiano e o mais refinado dos seus diretores, bem como um dos grandes perfeccionistas do cinema mundial, ao lado de um Stanley Kubrick, um cineasta sempre preocupado com a beleza plástica de seus filmes e que foi capaz de produzir algumas das cenas de maior impacto do cinema mundial.
Visconti foi também um importante diretor dos teatros e das óperas italianas, o que lhe permitiu um mais profundo aproveitamento de seus atores. Esta qualidade foi sempre destacada por quem trabalhou com ele, incluindo aí atores como os italianos Allan Delon, Carla Cardinale, Alida Valli, Silvana Mangano; o francês Jean Sorel; o alemão Helmut Berger; a sueca Ingrid Thulin; os ingleses Dirk Bogarde, Charlotte Rampling, Trevor Howard; ou o norte-americano Burt Lancaster.
A característica mais marcante em seu cinema, e que neste artigo será analisada mais detidamente, foi o tema da decadência de sua época, que é sempre vista como a decadência das classes dominantes. Inicialmente, Visconti desenvolveu estes problemas a partir da descrição da vida do operariado italiano em filmes como Obsessão, Belíssima, Terra Treme e Rocco e Seus Irmãos. Mais tarde, voltou-se para a burguesia italiana em filmes como O Leopardo, As Vagas Estrelas da Ursa, Violência e Paixão, O Inocente; e, por fim, atravessou as fronteiras nacionais e apresentou o problema de forma mais ampla em filmes como Noites Brancas, ambientado na Rússia czarista; O Estrangeiro, na França; Sedução da Carne e Morte em Veneza sobre a decadência do artista e Deuses Malditos e Ludwig, transcorridos em dois momentos diferentes da história alemã.
Esta obsessão do “conde vermelho” sobre o assunto não é difícil de compreender dado que ele mesmo era membro da burguesia italiana, herdeiro de uma abastada família da aristocracia rural e que viveu intensamente o período de total colapso do regime burguês em seu país durante a queda do fascismo e a desesperada tentativa de recomposição do regime feita em acordo com o Partido Comunista Italiano. A paralisia política, econômica e social da Itália nas décadas seguintes de refluxo das lutas sociais foi a fonte básica dos temas do cineasta, que buscou sempre em seus filmes acrescentar novos dados a esta percepção de que vivia em um mundo em franco processo de decomposição. Em sua essência, seus filmes procuravam respostas a esta percepção da decadência. “O que sobretudo me trouxe ao cinema”, afirmou certa vez o diretor, “foi o dever de narrar histórias de homens vivos: homens que vivem outras coisas e não as coisas por si mesmas. O cinema que me interessa é um cinema antropomórfico”. Viconti foi provavelmente o mais obcecado cineasta a explorar o problema da decadência do mundo moderno e reside aí a mais importante de suas contribuições à sétima arte.
Uma infância aristocrática
O futuro cineasta nasceu em novembro de 1906 em uma aristocrática família italiana. Filho do duque de Modrone, ele nasceu Conde Don Luchino Visconti Di Modrone.
Luchino cresceu em um suntoso palazzo, rodeado de todos os luxos, com uma educação privilegiada que o permitiu desenvolver sua percepção e seu gosto artísticos. Sua primeira educação foi dada em casa, supervisionada diretamente por sua mãe, e só mais tarde ele foi mandado à escola, em instituições particulares em Milão e Como.
Entre seus interesses, surgidos desde a juventude, estava a música e o teatro, ambos herdados de seus pais. Sua mãe era uma instrumentista talentosa e seu pai, um amante dos espetáculos cênicos, paixão que o levou a mandar erguer um palco particular na propriedade da família, onde grupos eram eventualmente contratados para atuar. Esta proximidade da família com a vida intelectual do país permitiu a Visconti conhecer na infância alguns dos mais importantes artistas da Itália, como o compositor Giacomo Puccini, o maestro Arturo Toscanini, ou o poeta e romancista Gabriele D’Annunzio.
Depois da separação dos pais, na década de 1920, Visconti foi enviado para estudar em um colégio interno entre 1924-26, ou seja, já sob o regime fascista.
Uma das maiores paixões e obsessões desenvolvidas por ele na juventude foi pelas corridas de cavalos. Durante cerca de oito anos, este foi praticamente o único interesse importante de sua vida. Esta paixão o levou a servir na Savoia Cavalleria Reggimento durante três anos a partir de 1926.
Em 1928, Visconti iniciou uma nova atividade como diretor teatral e de ópera. Entre seus trabalhos no período esteve inclusive uma produção para o La Scalla envolvendo a futura grande diva das óperas italianas, Maria Callas, na ocasião, ainda desconhecida.
Uma breve experiência cinematográfica em Paris
Aos 30 anos, Visconti mudou-se para a capital francesa. Era o ano de 1936, e, ali, ele entrou em contato com toda a efervescência cultural da cidade nos anos que precederam a eclosão da Guerra. Entre seus amigos mais próximos em Paris, estava a estilista Coco Chanel, e por intermédio dela, Visconti pôde conhecer o grande cineasta francês Jean Renoir. Foi através dessa amizade com Renoir que Visconti desenvolveu um crescente interesse pelo cinema.
Neste período, Visconti colocou-se à disposição para trabalhar com Renoir, atuando então como figurinista e assistente de diretor na produção de Une Partie de Campagne, de 1936, e Les Bas – Fonds, do ano seguinte.
Em 1937, Visconti viajou pela primeira vez para Hollywood, mas se desencantou com a pouca liberdade permitida aos artistas norte-americanos. Ele permanece nos Estados Unidos até a eclosão da guerra, em 1939, quando retorna à Itália.
De volta à terra natal, Visconti passa a compor o corpo editorial da revista Cinema, um dos principais periódicos italianos especializados na crítica à sétima arte. Visconti se insere, assim, em um dos grupos avançados da crítica cinematográfica italiana, um grupo de fervorosos detratores da baixa qualidade dos filmes produzidos pela Cinecittà italiana.
Os dissidentes da Cinecittà fascista
O grupo reunido em torno da revista Cinema representava a primeira manifestação de uma tendência à renovação das produções nacionais, rompendo com a mediocridade do cinema produzido pela indústria fascista. Não era um grupo coerente ou com um programa político ou estético definido, mas foi agrupando diferentes setores de dissidentes deste cinema. Era este o germe do movimento neorrealista.
Seu surgimento está diretamente relacionado à crise do regime provocado pela guerra. A crescente divisão interna da burguesia se expressou em uma divisão em sua intelectualidade e abriu caminho para uma movimentação política mais geral da população operária.
O fato mais expressivo em torno da criação desta crítica cinematográfica é o fato da revista ser editada por uma figura notória do regime fascista, Vittorio Mussolini, o filho do Duce e tenente da Regia Aeronautica. Em outras palavras, a formação deste grupo representava uma fissura no alto escalão do governo fascista, uma manifestação de seu processo de erosão. Revelava também a tendência de uma ala da burguesia italiana à ruptura com o fascismo como sua ideologia de Estado.
O corpo de redatores da revista incluía nomes como Cesare Zavattini, Giuseppe De Santis, Michelangelo Antonioni, Pietro Ingrao e Puccini Gianni, além do próprio Luchino Visconti.
Era ainda, porém, um movimento nacionalista. Estes críticos consideravam lamentável a qualidade do cinema produzido pela Cinecittà. Eram produções que não passavam de um pastiche de segunda linha dos grandes sucessos comerciais norte-americanos. Filmes que ficaram conhecidos pelo apelido irônico de telefoni bianchi (telefone branco), uma referência aos telefones “linha branca”, recém lançados na época, durante a guerra, e que se tornaram um dos badulaques mais desejados por certas camadas abastadas da pequena burguesia. Tornou-se um símbolo de sua superficialidade.
A gênese do neorrealismo italiano
A falta de qualidades artísticas destes filmes foi o pretexto para a formulação de um conjunto sistemático de críticas contra todos os valores conservadores propagados por estes filmes. Sua defesa dos valores da família, da religião, das tradições, das instituições nacionais e, de uma forma geral, do modo de vida burguês em suas manifestações mais tacanhas, que era a ideologia básica do fascismo.
Da mesma forma que a revista Cinema lançava sua crítica contra os telefoni bianchi, ela atacava também o cinema norte-americano no que ele tinha de pior e mais superficial: seu conservadorismo e superficialidade voltados ao entretenimento banal.
A Itália da guerra nada tinha em comum com este estado de espírito. Sua população passava pelas piores privações da economia de guerra. Cidades estavam devastadas, o povo massacrado, endurecido, miserável. Estes críticos tornaram-se porta-vozes da necessidade do cinema se renovar para expressar estes novos tempos de convulsões sociais e a iminência da revolução.
Este era também um movimento nacionalista, mas erguido sobre bases revolucionárias e em oposição ao nacionalismo fascista. Representava uma reação a este nacionalismo imperialista, defendendo a busca de um novo ideal de povo e de nação, e pretendendo colocar no primeiro plano não as banalidades locais, mas a verdadeira essência do que constituía a nação italiana: a classe operária miserável e sua luta pela libertação da opressão imperialista dentro e fora do país.
É daí que nascerão os temas típicos do cinema neorrealista, a luta da resistência italiana contra o fascismo, contra a invasão alemã, contra a dominação estrangeira e procurando se aprofundar na análise da psicologia deste povo, vivendo em meio à devastação física do país.
Apesar do cinema neorrealista nunca ter se constituído como um movimento organizado, esta era uma aspiração geral, inicialmente deste grupo de críticos e, mais tarde, dos cineastas neorrealistas.
Luchino Visconti, membro do grupo e parte da burguesia italiana, foi inicialmente um adepto do fascismo em seus ideais nacionalistas, mas rompeu com estas posições ao longo da guerra. Ele avança para posições socialistas e passa a contribuir ativamente com a Resistência italiana, chegando a abrigar dezenas de militantes em sua casa durante os anos finais de luta contra o regime de Mussolini. Seus biógrafos contam que sua residência, o Palazzo Visconti, se tornou durante meses um quartel-general para reuniões da Resistência, e, em 1944, Visconti chegou a ser preso por um breve período pela Gestapo durante a ocupação nazista à Itália.
Foi após abandonar a redação de Cinema, quando ele rompe totalmente seus vínculos com o fascismo, que Visconti teria a oportunidade de rodar seu primeiro filme como diretor, uma produção independente financiada com seus próprios recursos. Esta obra daria forma às ideias que o grupo debatera incansavelmente naqueles meses e lançaria as bases do cinema neorrealista italiano.
1940-1950: primeira fase de Visconti, o retrato da classe operária italiana
Em 1943, Visconti realiza seu filme de estreia como diretor, Obsessão, filme tido hoje como de fato a primeira obra do cinema neorrealista, antecipando em dois anos Roma: Cidade Aberta, obra-prima de Rosselini, que popularizaria o movimento.
Obsessão apresentava já algumas das características importantes do neorrealismo, como o fato dos protagonistas não serem os típicos elementos da burguesia ou da classe média italiana, mas figuras saídas da classe operária. Suas figuras miseráveis são apresentadas também através de uma filmagem rústica, em um estilo quase documental em que a câmera oscila a todo momento.
Sua técnica, porém, não foi definida por uma determinada opção pela simplicidade, mas pela falta de recursos da produção. Sem financiadores, o filme foi bancado todo com o dinheiro levantado pelo próprio Visconti vendendo as joias da família.
O filme era uma adaptação o romance O Carteiro sempre toca duas vezes, do norte-americano James Cain, e contava a história de Gino Costa, um vagabundo errante que se envolve com Giovanna, uma dona de pensão frustrada com seu casamento e a vida morando no miserável Vale do Pó. Os amantes tramam, então, o assassinato do marido de Giovanna, e partem em viagem sem rumo certo.
A polícia suspeita do crime e persegue o casal, que, sozinho, vagando de cidade em cidade, acaba sucumbindo à culpa do assassinato.
Personagem importante na trama é ‘Lo Spagnolo’, marginal amigo de Gino, um artista de rua espanhol cuja relação com ele, sempre ambígua, sugere um envolvimento sexual obscuro entre os dois. Estas insinuações provocaram grande escândalo na época, principalmente junto à Igreja.
Em uma trama repleta de dilemas morais e permanente clima de crise, estas duas personagens desgarradas encarnavam a falta de perspectivas, a desesperança, a dúvida e a miséria espiritual da vida da classe operária sob o fascismo italiano, cujas analogias políticas são claras apesar de seu tema não ser abertamente político.
A obra foi um enorme sucesso comercial na Itália, particularmente por apresentar a realidade social das classes populares, que era um tema novo no cinema italiano. Durante a temporada, no entanto, os censores intervieram e retiraram Obsessão dos cinemas.
Após sua proibição, os fascistas atearam fogo em todos os originais e a obra teria se perdido completamente caso Visconti não tivesse escondido um negativo, de onde se pôde, mais tarde, recuperar toda a filmagem.
A volta aos palcos
Com o término da guerra, Visconti retomou suas atividades na produção de óperas e peças teatrais. Neste momento, ele compôs a jovem geração de diretores conhecidos por seus esforços por renovar o movimento teatral italiano desarticulado durante o período fascista. Ele, como os demais membros dessa geração, se encarregou de encontrar uma nova forma de representação para as peças consagradas e introduzir novos textos dramatúrgicos no repertório, censurados durante o governo Mussolini, obras de escritores como Jean Cocteau, Jean-Paul Sartre ou Tennessee Williams.
Visconti estabeleceu seu prestígio trabalhando no Teatro Eliseo, em Roma. Suas peças foram aclamadas tanto pelos temas-tabu que ele passou a levar aos palcos — como a homossexualidade ou incesto — quanto por seus temas políticos, revelando suas posições socialistas e sua simpatia pela luta da classe operária.
No terreno das óperas, Luchino Visconti tornou-se também uma figura nacionalmente conhecida, particularmente por sua associação com a cantora Maria Callas, que, mais tarde, afirmaria ter aprendido realmente a interpretar graças à direção de Visconti. Com a cantora, ele dirigiu montagens de espetáculos como La Sonnambula e La Traviata.
Em grande medida devido à precariedade da indústria italiana naqueles anos, às vésperas e imediatamente depois da derrota na guerra, o segundo filme do diretor viria apenas em 1946, o documentário Dias de Gloria, que era, na realidade, uma produção coletiva, fruto da colaboração de Visconti com Giuseppe de Santis, Marcello Pagliero e Mario Serandrei. O documentário apresentava diversas imagens reais e reconstituições da ocupação alemã na Itália, registrando o momento em que a resistência participava da luta para expulsar os nazistas do país. Há cenas impressionantes neste documentário, como o linchamento pela população de Donato Carretta, ex-diretor de uma das penitenciárias italianas.
A Terra Treme, a vida de lutas e derrotas dos trabalhadores italianos
A obra mais representativa do período neorrealista de Visconti foi, porém, seu excepcional A Terra Treme, lançado em 1948, uma adaptação do romance I Malavoglia, de Giovanni Verga, maior expoente do realismo-naturalismo italiano.
Originalmente, o filme foi concebido como um dos episódios de uma trilogia que retrataria a vida e a luta dos trabalhadores da Sicília, mas os outros episódios nunca foram rodados.
Do ponto de vista formal, esta é a obra mais perfeitamente neorrealista de Visconti, que usou os próprios pescadores da comunidade ao invés de atores como forma de dar mais realismo à obra, filmando em locações reais, com a maioria das tomadas externas, e tendo como tema não um drama psicológico, que foi o caso de Obsessão, mas a própria luta cotidiana dos trabalhadores.
Realizado por encomenda do Partido Comunista, A Terra Treme narra a rotina em uma comunidade de pescadores na vila de Acitrezza, na costa leste da Sicília, expondo a luta de classes através dos conflitos entre os pescadores e os grandes comerciantes de peixes.
Em tom semi-documental, a história do filme se desenvolve a partir da figura de António, filho mais velho do pescador Valastro, que começa a se revoltar com o baixo preço pago aos pescadores pelos ricos comerciantes de peixes na região. Ao arrumar uma disputa com o atacadista Lorenzo, António acaba preso.
Retornando ao vilarejo, decide cortar a intermediação entre sua pesca e os comerciantes. Ele hipoteca a casa para financiar a compra de um barco novo e passa a vender os frutos do trabalho familiar diretamente na cidade mais próxima.
Sua iniciativa é positiva, mas uma tempestade destrói o barco. Aquele delicado equilíbrio financeiro da família se desmorona e o grupo acaba se desintegrando na miséria.
Frustrado, António observa então sua irmã, Lúcia, se entregar à prostituição, seu irmão Cola tornar-se contrabandista ilegal, e sua irmã mais jovem, Mara, ser rejeitada pelo namorado com quem iria casar-se.
A Terra Treme é um retrato da opressão dos trabalhadores e também das tragédias a que eles estão sujeitos ao longo da vida. O risco que representa quaisquer mudanças sérias em suas vidas e o perigo sempre iminente de serem atirados à marginalidade. Apesar desta derrota brutal de António e sua família, o filme termina não no desespero, no vazio, mas com uma das mais belas cenas do cinema italiano. Um conjunto de barcos de pesca avança mar adentro. Em um dos barcos está António, que olhando fixamente para o horizonte, para o além, rema seu barco a espera de novas lutas. Este desfecho acrescenta um conteúdo muito importante ao filme, uma afirmação do modo de vida dos trabalhadores, cuja existência sob o capitalismo não é mais que uma sucessão de lutas.
Belíssima: a classe operária em busca de um lugar ao sol
O filme que marcaria o encerramento da primeira fase neorrealista de Luchino Visconti foi sua produção seguinte, Belíssima, protagonizado pela grande estrela do movimento, Anna Magnani.
Belíssima é a história da destruição das ilusões da classe operária italiana em conseguir um lugar ao sol da sociedade burguesa. Sua heroína é Magdalena Cecconi, uma mãe solteira, moradora dos subúrbios operários, que sustenta a duras penas sua única filha, Maria. A janela de sua casa tem vista para o cinema ao ar livre que funciona ao lado, e todas as noites ela senta à janela para assistir àqueles filmes hollywoodianos, com suas divas e galãs em suas mansões e carros luxuosos. Este cinema surge no filme como uma representação da sociedade burguesa, com todas as suas oportunidades inacessíveis aos trabalhadores que os veem de longe apenas. Magdalena vê no cinema a possibilidade de finalmente sair daquela vida miserável. Quando ela descobre que um estúdio estava em busca de uma atriz mirim para um de seus filmes, Magdalena não hesita em tornar sua pequena Maria seu bilhete de entrada neste mundo de sonhos e ilusões.
O desenvolvimento do filme é todo marcado por estas aspirações da mãe, que começam a se tornar cada vez mais opressivas para Maria, incapaz de compreender o sentido daquele esforço. Os requisitos para o preenchimento da vaga vão se tornando um meio de escravização da filha, que passa a ser “treinada” pela mãe para conseguir o emprego, obrigando-a a decorar falas, versos, canções, aprendendo a andar, a falar, a sentar, e tendo de praticamente modificar todo o modo de ser da menina para enquadrá-la nas estreitas exigências dos diretores da Cinecittà.
Magdalena torna-se obcecada pela sua busca de ascensão social, e é um choque quando, após a tão aguardada filmagem do teste de Maria, o grupo de diretores e críticos que assistem à filmagem caem na gargalhada, ridicularizando de todas as formas a menina. Termina aí seu sonho. E o motivo? Maria não era uma criança bonita segundo os padrões da Cinecittà. Ela imediatamente ganha o apelido de “anã” entre os produtores, o que deixa Magdalena horrorizada. É desta forma que suas ilusões caem por terra e ela retorna à sua vida no subúrbio, derrotada, humilhada e consciente de não fazer parte daquele mundo sonhado.
O prenúncio de um novo caminho no cinema
Depois de Belíssima, Visconti afastou-se de seu estilo neorrealista tradicional para ingressar em um universo no qual se especializaria na etapa seguinte de sua obra, um cinema voltado à análise não mais da vida dos operários italianos, mas da burguesia, de suas famílias, dirigentes e intelectuais, dentro e fora da Itália.
Do ponto de vista estético, este filme marca a transição do diretor da simplicidade típica do neorrealismo para um cinema formalmente mais sofisticado. A forma realista é substituída por uma nova, luxuosa e perfeccionista nas imagens, mas o conteúdo continua a ser realista.
Essa ruptura vê-se desde a primeira cena de Sedução da Carne. Em Belíssima, a abertura era marcada pela sequência sóbria de uma orquestra, mostrada em cortes suaves, com diversos planos-detalhe dos instrumentos musicais que se interpunham a planos médios dos grupos de músicos. Era uma abertura marcada pela sobriedade e o despojamento.
Sedução da Carne, do mesmo modo, começava com uma cena musical, mas a austeridade daquela orquestra de Belíssima é substituída pela opulência e exuberância da ópera Il Trovatore de Verdi. Nesta abertura, a dramaticidade dos cantores no palco alterna-se com a majestade do teatro, a elegância dos militares e a suntuosidade das damas nos camarotes.
O contraste entre estas cenas marca também a diferença de estilo entre os dois filmes, e por sua vez, de duas fases distintas do cinema de Visconti. Uma marcada pela simplicidade e o despojamento, outra, pelo luxo, a opulência e o excesso, como se a mudança do foco de seus filmes, das camadas oprimidas para as classes dirigentes, exigisse também uma transição formal à altura.
Há também uma diferença fundamental no que diz respeito ao conteúdo de seus filmes desta nova fase. Se a característica básica do cinema neorrealista de Luchino Visconti é a preocupação com o problema social e político imediato da Itália, uma ênfase em apresentar um retrato da situação de miséria física e espiritual da população, sua segunda fase iria voltar-se a problemas distintos, à análise de questões de caráter mais histórico e filosófico e, mais precisamente, à análise do processo de decadência da sociedade italiana e de sua burguesia.
Sedução da Carne: os princípios dão lugar às paixões
Ao efetuar esta transição, Visconti realizou uma de suas maiores obras e deu um salto qualitativo em sua carreira. Nos anos seguintes, ele realizaria uma sequência de obras-primas, algumas das maiores realizações do cinema mundial.
Sedução da Carne é uma adaptação do romance Senso de Camilo Boito, um dos escritores do movimento conhecido como scapigliatura (movimento dos descabelados), considerado como precursor da literatura decadente e simbolista internacionalmente e dos crepuscolari italianos do final do século XIX. Sua ação se passa poucos anos após a unificação italiana, em 1866, quando Veneza estava ainda sob o domínio austríaco. As forças revolucionárias ganhavam cada vez mais força para a conquista destes territórios quando o rei italiano, Vítor Emanuel II, faz um acordo com o governo da Prússia, que entrara em guerra contra a Áustria. É o momento da crise final da ocupação austríaca. Com o encerramento da Guerra Austro-Prussiana, Veneza passaria a integrar o Estado italiano.
O filme começa durante a encenação de Il Trovatore na ópera de Veneza, quando os nacionalistas, exaltados, lançam das galerias do teatro panfletos em defesa da unificação, que caem sobre as cabeças dos oficiais austríacos que lotam o teatro. Um dos principais líderes do movimento clandestino italiano, o Marquês Roberto Ussoni, desafia ali para um duelo o tenente austríaco Franz Mahler (sem relação com o famoso compositor austríaco). Temerosa pelo destino de Ussoni, a Condessa Livia Serpieri, sua prima, decide aproximar-se de Mahler e o convencer a desistir do duelo. Apesar de seu nacionalismo, Lívia acaba seduzida por Mahler.
Os dois iniciam um caso amoroso, encontrando-se às escondidas em pequenos hotéis de Veneza. Certa manhã, porém, o oficial falta a um encontro e Lívia sai em busca dele, preocupada, até descobrir, por outros soldados, que ele provavelmente passara a noite com outras mulheres.
A família da condessa está, nesse momento, abandonando Veneza para afastar-se dos conflitos. Sem poder esquecer Mahler, ela parte com eles.
Para sua surpresa, o oficial austríaco aparece em seu quarto em certa madrugada, e, apesar de sua hesitação, eles retomam o caso.
Mahler está cansado da guerra e do Exército, e sugere à amante uma forma de conseguir abandonar a frente de batalha sem ser considerado um desertor. A condessa morde a isca e decide pagar o suborno necessário para Mahler deixar a guerra em segurança, usando para isso o dinheiro de um fundo levantado por seu marido e familiares para financiar a luta pela independência.
Satisfeito, o oficial parte para a frente austríaca. Semanas mais tarde, Lívia recebe uma carta dele informando que a operação foi bem sucedida, e ele vivia agora confortavelmente em um apartamento alugado com o dinheiro dela. A condessa decide-se então abandonar sua vida e partir para sempre para viver com o amante. Sua decisão implicava renegar seus conterrâneos e abandonar a luta pela unificação. Ela parte de madrugada, ansiosa para reencontrar o amante, mas sua surpresa é completa quando chega ao seu apartamento.
Mahler apresenta-se como outro homem, alcoólatra, deprimido e desmoralizado. Com roupas sujas e a barba por fazer, ele a recebe cínica e agressivamente. “Não sou mais um oficial, nem um cavalheiro, sou apenas um desertor bêbado”, afirma ele.
Ele vive em sua casa em companhia de uma prostituta, o que escandaliza Lívia. Sentados à mesa, sempre procurando humilhar a amante, Mahler confessa seu verdadeiro caráter, revelando ser ele um golpista profissional que vivia do dinheiro que conseguia de suas amantes e do roubo em trapaças no jogo.
Mahler era a materialização da derrocada histórica do imperialismo austríaco. Sua depravação pessoal estava intimamente ligada a este problema, era um homem que já não percebia mais ter nada em comum com seus compatriotas, era um náufrago desgarrado, a imagem da desintegração deste mundo. Ainda no mesmo diálogo, ele afirma: “sou um desertor porque sou um covarde. Mas não me desagrada ser um desertor, nem um covarde”.
A ideia de pertencer a uma determinada nação para ele já não significa nada: “que me importa que meus compatriotas tenham vencido hoje uma batalha em Custozza? Acabando a guerra, a Áustria estará acabada, e um mundo inteiro desaparecerá, o mundo ao qual pertencemos, você e eu. O mundo novo de que seu primo fala não terá interesse algum para nós”. Aí, Mahler expõe a situação que ambos compartilhavam. Não apenas ele, mas também Lívia eram, ao seu modo, traidores de seu povo. No fim deste seu monólogo, ele expõe sua filosofia: “buscar o prazer onde ele se encontra”. Esta máxima de Mahler era a expressão mais acabada de sua decadência pessoal.
Este seria um tema corrente na obra de Visconti, e apareceria novamente em diferentes filmes seus, o traço mais característico de sua visão da decadência. A substituição do homem que se apoia em seus princípios pelo “homem hedonista”, o homem que faz da busca por prazeres sensuais o princípio de sua existência. Aqui, se encontra uma das chaves da obra madura de Visconte: o homem representa, em sua decadência, a classe em bancarrota, pars pro toto. Esta questão seria retomada, de diferentes maneiras, em praticamente todos os seus filmes seguintes.
Depois destas revelações, Lívia deixa, em prantos, a casa de Mahler, seguindo imediatamente para um quartel policial austríaco, onde ela denuncia o ex-amante por deserção. O oficial que a recebe, surpreso, condena a atitude de Lívia: “isso é assassinato!”, grita ele com indignação. De fato, na cena seguinte, Mahler é levado para o paredão e fuzilado. Este desfecho reafirma as palavras ácidas, mas verdadeiras, de Fritz Mahler. Nem ele, nem Lívia se apoiavam mais em princípios para tomar suas decisões. Suas vidas eram definidas por suas paixões, uma definição in nuce da decadência propriamente.
Rocco e seus Irmãos
Com o filme Rocco e seus Irmãos, de 1960, Luchino Visconti retoma e encerra a fase propriamente neorrealista de sua obra. Ainda tendo em foco a vida dos operários italianos, Visconti narra aqui a luta de uma família de camponeses miseráveis para sobreviver em meio à cidade grande. O diretor mostra aí com grande clareza a decadência da sociedade burguesa através deste retrato brutal da vida nas metrópoles. Estes camponeses se mudam para a cidade na esperança de se desenvolver, mas acabam descobrindo que, para sobreviver ali, teriam de resistir à influência desagregadora que os ameaça atirar em uma forma ainda mais brutal de miséria.
Rocco e Seus Irmãos acompanha a história da viúva Rosaria Parondi e seus cinco filhos, Rocco, Simone, Vincenzo, Ciro e Luca. Como ela diz, “cinco, como os dedos de minha mão”, um símbolo dessa unidade familiar recorrente no filme. Em busca de melhores oportunidades de emprego, eles deixam a pobreza do campo na Sicília e se estabelecem na industrializada cidade de Milão.
O filme acompanha como cada irmão segue um caminho diferente para ganhar a vida na cidade. A maioria dos irmãos ingressa na indústria, mas a obra concentra-se na história dos dois irmãos mais velhos, Rocco e Simone.
O que diferencia os dois é o seu caráter, que irá selar seu destino. Enquanto Rocco se apoia na unidade de sua família para nunca esquecer sua identidade, sua origem rural, o que lhe dá uma fibra de caráter inabalável; Simone, de temperamento frágil, inseguro e oportunista, mergulha de cabeça na vida milanesa, perdendo completamente a identidade. Torna-se boxeador e se apaixona pela prostituta Nádia, que sai com o rapaz durante algum tempo por puro divertimento, mas que nada quer com ele. Simone, porém, torna-se obcecado por ela, e procurando conquistá-la, recorre a pequenos furtos. Ele aos poucos abandona seus interesses pessoais e sua vida começa a se deteriorar.
A garota, por outro lado, após romper com Simone, cede aos encantos de Rocco, e desencadeia uma onda de desentendimentos entre os irmãos. Em uma das cenas mais impactantes do filme, Simone espanca Rocco e estupra Nadia diante dele.
Inicialmente, Rocco revolta-se contra o irmão, mas seu senso de preservação da família — esta seria a sua fraqueza — fala mais alto e leva-o a abandonar Nádia, recomendando que ficasse com Simone, que a amava. Ele entende a atitude leviana da moça, que se deixara envolver com os dois irmãos, ao mesmo tempo em que perdoa a “fraqueza” de Simone. Esta seria a base da tragédia que se desenrola a partir daí, e que leva à destruição tanto de Nádia quanto de Simone.
Sentindo-se miserável, Nádia acata ao pedido de Rocco por puro despeito, passando a viver com Simone contanto que ele pagasse por ela. A união sórdida entre os dois dura até Simone ficar sem dinheiro, e ela o abandona.
Ao mesmo tempo em que Simone se torna uma pessoa cada vez mais degradada, Rocco torna-se ele mesmo um boxeador de sucesso.
Não se passa muito tempo até Simone começar a viver na marginalidade, e a ser procurado pela polícia. É Rocco quem sai novamente em seu socorro, acoberta os problemas em que o irmão se envolve e dá uma pequena soma para ele abandonar a cidade.
O desfecho da história é dos mais dramáticos. Tendo descoberto onde Nádia morava, Simone vai atrás dela, implora seu amor, mas, rejeitado, assassina a moça a facadas.
A tragédia em que embarcam os irmãos contrasta vivamente com o estilo de vida de Ciro e Vicenzo, irmãos mais jovens que se tornam operários de uma fábrica milanesa.
Enquanto Rocco, mesmo assediado pelas pressões de um modo de vida burguês, consegue manter seus valores e sua identidade durante sua estadia em Milão, Simone e Nádia aparecem como figuras contraditórias, sem valores sólidos, sempre sujeitos a cederem à pressão exterior. Eles são ao mesmo tempo os vilões e as grandes vítimas da história.
Nádia seria a própria personificação da vida milanesa, sedutora, mas profundamente destrutiva em seu modo de vida dissoluto. Sempre amargurada e vivendo ela mesma na marginalidade, por sua leviandade, torna-se o instrumento da deterioração espiritual de Simone, que era, no fundo, um rapaz ingênuo sem qualquer preparo para enfrentar a corrupção da metrópole.
A chave para a compreensão da obra é um diálogo entre Rocco e Vicenzo em que este afirma a necessidade de se afastarem de Simone, caso contrário, ele afundaria toda a família. Ele afirma: “somos sementes retiradas do mesmo saco e destinadas a dar frutos. Uma semente que deu errado deve ser eliminada… como fazemos quando limpamos lentilhas”. Rocco recusa esta conclusão, e nisso se percebe seu erro ao basear sua moralidade em laços familiares e não em determinados princípios comuns. Sua hesitação terminaria com o assassinato de Nádia e a desmoralização definitiva de Simone. Visconti volta a tratar da classe operária, mas enfatiza um ponto central de sua obra: trabalhadores que se afastam de sua classe acabam em decadência, seja ao cair no lumpemproletariado, seja ao se deixar corromper pela burguesia.
Após esta breve retomada dos temas e do formato característicos do neorrealismo, Visconti partiria para um caminho distinto em seu cinema, especializando-se no retrato das mazelas sociais a partir de uma nova abordagem dos problemas de sua época.
1960-1970: a fase madura do cinema de Visconti, a decadência da burguesia europeia
Após Rocco e Seus Irmãos, Luchino Visconti abandona definitivamente os temas e a forma que consagraram o período neorrealista de seu cinema. Este não foi um caminho isolado seguido por Visconti a partir da década de 1960, mas marcaria toda a cinematografia italiana após o refluxo das lutas revolucionárias que se seguiram ao imediato pós-guerra. Outros pioneiros do neorrealismo, como Roberto Rossellini, passam para um cinema mais psicológico, debruçando-se sobre diferentes aspectos da crise da burguesia e pequena burguesia italianas no período. Estes temas marcariam as obras dos mais proeminentes cineastas italianos desta geração, como Frederico Fellini, Michelangelo Antonioni ou Pier Paolo Pasolini.
O Leopardo, uma análise da unificação italiana
A obra seguinte de Luchino Visconti, O Leopardo, de 1963, marca esta passagem. Tanto do ponto de vista da forma quanto do tema, ele se aproximaria novamente, e agora de modo mais definitivo, das características já presentes em Sedução da Carne, analisando, novamente, problemas históricos e filosóficos relacionados à nação italiana a partir de suas classes dirigentes.
O Leopardo, adaptação do famoso romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, escrito na década de 1950, hoje considerado uma das grandes obras da literatura italiana, retomava o período do Risorgimento e a luta pela unificação italiana. Este filme se passa poucos anos antes dos episódios descritos em Sedução da Carne, retornando a 1860, quando as tropas de Garibaldi desembarcam no Sul italiano e iniciam a Expedição dos Mil, que levaria à conquista do Reino das Duas Sicílias pelos revolucionários garibaldinos.
O protagonista da trama é o príncipe Fabrizio Salinas, representante da aristocracia siciliana que se vê confrontada com a chegada da revolução. Inicialmente, ele se opõe totalmente às mudanças, mas, alertado por seu sobrinho, o jovem idealista Tancredi, Salinas percebe estar diante de um interessante dilema: a obrigação de sua família estabelecer um acordo com os revolucionários italianos para ser capaz de ainda manter seu poder naquela nova Itália unificada; ou a preservação dos princípios e preconceitos aristocráticos e reacionários. O lema pessoal de Salinas expressava perfeitamente a situação colocada diante dele e a fórmula que encontra para resolvê-la: “para que tudo permaneça como está, é preciso que tudo mude”. O Leopardo é precisamente a história dessa aliança entre a aristocracia — representação da velha Itália, dos velhos acordos com as potências imperialistas estrangeiras — e a burguesia revolucionária, acordo que permitiu a consolidação do Estado nacional italiano, preservando em parte o poder da aristocracia fundiária e do Papa, que acabarão se convertendo em capitalistas.
O príncipe de Salinas, o “leopardo” que dá o título à obra, é a única pessoa que entende perfeitamente estes problemas, que é capaz de ver mais longe precisamente por estar no topo do poder, sendo ele parte da classe dominante da Sicília no momento em que desembarcam ali as forças garibaldinas dispostas a destruir o poder da aristocracia rural sulista que davam apoio à monarquia borbônica na região.
Salinas acompanha a adesão entusiasta de Manfredi, seu afilhado, ao grupo de Garibaldi, e, inicialmente relutante, quando toma consciência da inevitabilidade da revolução, estimula-o em sua decisão. Depois da partida de Tancredi, Salinas parte logo após para Donnafugata, onde buscava se manter à margem dos conflitos.
Ali, estabelece contato com um dos líderes da burguesia local, Dom Calogero, representante conservador e carreirista da classe ascendente. Após descobrir a fortuna que Calogero acumulava, Salinas começa a atuar nos bastidores visando uma futura aliança. A oportunidade surge diante dele quando conhece a filha de Calogero, Angélica, belíssima mulher interpretada por Claudia Cardinale, impulsiva, de temperamento tempestuoso, embora rústica em comparação com a aristocracia, que era a própria personificação do vigor da nova classe ascendente. Angélica logo se interessa por Manfredi, recém saído do exército revolucionário, e Salinas organiza sem demora o plano de casamento entre os dois, deixando de lado antiga pretendente de Manfredi, sua própria filha, Concetta, moça tímida e recatada que manifestava à sua maneira o conservadorismo de sua posição social e a decadência da classe aristocrática.
Esta união representava, no filme, a aliança política realizada entre a velha aristocracia falida e decadente e a burguesia ascendente que assumia as rédeas do poder na Itália unificada e que abre caminho para o processo, muito doloroso para o campesinato italiano, de transformação da agricultura feudal em capitalista e dos senhores da terra em capitalistas agrários, processo que está na base da emigração italiana para as Américas. Politicamente, esta aliança se deu com o acordo feito por Garibaldi com Vittorio Emanuelle II, apoiando-o em sua nomeação como primeiro rei da Itália em finais de 1861. Apesar do acordo ter expressado uma necessidade vista por Garibaldi para consumar a unificação nacional, foi um acordo feito à revelia da ala esquerda, republicana, do movimento, que tinha à sua frente Giuseppe Mazzini.
A obra, portanto, procurava ser um retrato alegórico do momento em que a Itália surgia como nação, uma análise do caráter e do temperamento das diversas forças sociais envolvidas no processo, nisso reside a principal qualidade do filme. Tancredi representava a juventude idealista, romântica, ingênua, mas ambiciosa, que aderiu à revolução sem ter uma consciência profunda dos problemas políticos colocados. Dom Calogero, em seu jeito de bufão, ignorante e sem refinamento, mas habilidoso na administração de seus negócios e socialmente bem posicionado, era a expressão da burguesia, poderosa, mas inexperiente na administração do Estado. O príncipe Salinas é o único a ter consciência plena do que ocorria, consciente de fazer parte de um mundo que desaparecia, é o retrato da decadência consciente do seu estado. A união entre a velha classe dominante e a nova é selada na grandiosa cena do baile do casamento, sequência que toma quase um terço do filme e durante a qual Salinas reflete profundamente estes problemas. O filme de Visconti encerra-se aí, apesar do romance de Lampedusa estender-se ainda por mais alguns anos, acompanhando o desfecho do casamento de Tancredi e Angélica.
Visualmente, o filme é belíssimo, a ruptura definitiva com seu caminho anterior no neorrealismo. Ao voltar seus olhos da classe operária para a burguesia, Visconti desenvolvia plenamente todas as qualidades de seu cinema, que irá se caracterizar nos anos seguintes pela sofisticação formal e o rigor com que ele tratava todos os planos, buscando extrair o máximo das qualidades plásticas e dramáticas de suas histórias.
Mais importante que isso era também seu interesse em analisar de um ponto de vista mais profundo o caráter da crise em que vivia a sociedade italiana em seu próprio tempo, nos anos que se seguiram ao colapso do fascismo, quando a burguesia italiana entrou em um profundo processo de deterioração que apenas se aprofundou desde então.
A crise da família burguesa italiana
Este problema aparecerá de uma forma muito distinta no filme seguinte do diretor, de 1965, As Vagas Estrelas da Ursa, um drama psicológico que se debruça sobre uma crise familiar.
O filme, como o próprio Visconti definiu, é um giallo, um gênero de narrativa policial chamado assim pelo fato de os livros de histórias policiais terem capas amarelas. Nele, tudo que parece claro de início mostra-se incerto no final. Vítimas e culpados se confundem em uma obra cuja marca registrada é ambiguidade. O filme é essencialmente uma tragédia moderna, cujo desenvolvimento traz diversas relações com tragédias clássicas como Édipo Rei, Electra ou Orestéia. “Escolhi o tema do incesto porque o incesto é o último tabu da sociedade contemporânea: todavia, não foi uma escolha programática, é um motivo que estava no ar e que é ligado à vicissitude de Electra, e volta em todas as peças que se inspiram, mais ou menos vagamente em Electra”, comentou Visconti.
A ação começa quando Sandra, membro de uma rica família da burguesia italiana, se vê obrigada a voltar à sua terra natal, Volterra, para a inauguração de um jardim em homenagem ao seu pai, um renomado cientista judeu assassinado no campo de Auschwitz pelos nazistas. Ao lado de seu marido, o norte-americano Andrew, ela chega ao palazzo em que viveu sua infância. Está lá também seu irmão, Gianni.
Durante a estadia destas três figuras na mansão, antigos fantasmas do passado começam a rondar seus dias. Andrew, curioso e um tanto oprimido, começa a sondar Gianni sobre o passado de Sandra. Esta, por sua vez, revive parte do encantamento de sua infância ao lado de Gianni. Recordando o passado, discutem o segundo casamento de sua mãe, com Gilardini, um rico industrial, revelando suas suspeitas de que a prisão do cientista teria sido arranjada pelos dois justamente com o intuito de casarem-se.
A relação incestuosa entre Sandra e Gianni insinua-se ao longo de todo o filme, relação que teria sido retratada no romance que Gianni acabara de escrever sobre sua adolescência, As Vagas Estrelas da Ursa, cujo título é uma referência ao extraordinário poema de Giacomo Leopardi, Le ricordanze (As recordações), onde as recordações da infância, despertadas pelas estrelas, se juntam ao presente onde o narrador pensa na morte:
Vaghe stelle dell’Orsa, io non credea
Tornare ancor per uso a contemplarvi
Sul paterno giardino scintillanti,
E ragionar con voi dalle finestre
Di questo albergo ove abitai fanciullo,
E delle gioie mie vidi la fine.
Quante immagini un tempo, e quante fole
Creommi nel pensier l’aspetto vostro
E delle luci a voi compagne! Allora
Che, tacito, seduto in verde zolla,
Delle sere io solea passar gran parte
Mirando il cielo, ed ascoltando il canto
Della rana rimota alla campagna!
E la lucciola errava appo le siepi
E in su l’aiuole, susurrando al vento
I viali odorati, ed i cipressi
Là nella selva; e sotto al patrio tetto
Sonavan voci alterne, e le tranquille
Opre dè servi. E che pensieri immensi,
Che dolci sogni mi spirò la vista
Di quel lontano mar, quei monti azzurri,
Che di qua scopro, e che varcare un giorno
Io mi pensava, arcani mondi, arcana
Felicità fingendo al viver mio!
Ignaro del mio fato, e quante volte
Questa mia vita dolorosa e nuda
Volentier con la morte avrei cangiato.
(“Vagas estrelas da Ursa / Não acreditava voltar a contemplá-las / Cintilantes, no jardim paterno / Nem a refletir com vocês das janelas desta morada / Onde morei quando criança e vi findar minhas alegrias”).
No filme, as recordações são fantasmas que assombram o presente, não uma nostalgia que contrasta com a crise, mas o próprio fundo da crise.
Ao longo da trama, vê-se a rede de desconfianças e intrigas que permeiam as relações da família, marcada pela decadência. Ao final da obra, em meio ao fim da união entre Sandra e Andrew e o suicídio de Gianni, estas dúvidas permanecem com o espectador. Foi uma forma distinta encontrada por Visconti para abordar o mesmo tema da decadência social italiana. O fato da obra se passar em Volterra, na Toscana, local repleto de ruínas etruscas, não poderia ser mais significativo, pois acrescenta um significado mais amplo à narrativa. Volterra é a região onde teria começado a povoação da Península Itália (estima-se que em torno do século VIII a.C.), início de toda a nação italiana. Na obra, Volterra assume também um significado emocional, a volta às origens, onde Sandra irá confrontar os espectros esquecidos de seu passado. Enquanto estão todos absorvidos em seus dramas emocionais, apenas o norte-americano Andrew procura analisar de forma mais distanciada as questões colocadas, buscando tirar o véu de mistério em torno do passado de sua esposa e entender o que teria realmente ocorrido. Por fim, incapaz de confiar nas palavras de Sandra, Andrew encerra a relação e volta aos Estados Unidos.
Do ponto de vista plástico, o filme é outra obra soberba do cinema de Visconti. Rodado em preto e branco, possui inúmeras tomadas memoráveis, desde a cena de abertura, que mostra uma sequência magistral de estradas e paisagens acompanhando o movimento carro de Sandra e Andrew que se dirige a Volterra. A cena cheia de sensualidade do reencontro entre os irmãos no jardim noturno do palácio, em meio a uma ventania, também é excepcional.
A crise espiritual do segundo pós-guerra
Em 1967, Luchino Visconti toma como ponto de partida para seu novo filme uma das obras mais representativas da geração do pós-guerra, a novela existencialista O Estrangeiro, do francês Albert Camus. Seu herói não era outra coisa que a manifestação de uma brutal decadência social, expressa na forma de um sentimento mórbido de estranhamento da vida e da sociedade como um todo.
Mersaud era um homem dominado pela apatia. Nada mais o excitava na vida, desde os fatos mais banais, seu namoro, sua relação com os vizinhos, até acontecimentos mais dramáticos, como a morte de sua mãe, passando pelo assassinato de um homem em uma praia com quatro tiros simplesmente porque “fazia sol”, até sua condenação à morte, tudo conseguia apenas provocar nele o tédio e a indiferença. Moralmente, ele se sentia alheio àquele mundo, cujos valores parecia não compreender. “Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um telegrama do asilo: ‘mãe morta. Enterro amanhã. Sinceros sentimentos’. Isso não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem”, reflete Mersaud, apático. Ao final da obra, este estranho anti-herói, considerado um misantropo perigoso, é executado pelo Estado que lhe era igualmente estranho.
Mersaud era um produto da sociedade decadente em que vivia. Sua indiferença diante da rotina, dos sentimentos, das leis, da punição, nada daquilo era identificável à sua sensibilidade. Aparentemente desumanizado, este pária era, na verdade, uma representação fantástica do homem sensível que tomara consciência do absurdo da época em que vivia. A análise da obra, tanto da novela quanto do filme, é indissociável deste período específico da história europeia, a ascensão do fascismo em toda a Europa, a falência do stalinismo, a Segunda Guerra, o genocídio, a destruição desenfreada, a capitulação covarde do governo francês diante de Hitler, a perseguição política, as execuções sumárias nas ruas de Paris, o silêncio da população diante de tais crimes, seu ingresso passivo nas fileiras destes exércitos imperialistas. Tudo aí, observado friamente, daria a impressão de ser regido por alguma lei insana, onde, aparentemente, a lógica não era aplicável. Recoberto sob uma fina camada de nacionalismo rasteiro, este carnaval bizarro procurava também ser apresentado pelo conjunto da imprensa capitalista e dos governos como uma luta por grandes ideais humanistas, ao invés de revelar o que de fato era: um dos maiores massacres da história e a colocação das melhores inovações da técnica e da ciência modernas a serviço do assassinato em massa, da destruição social, aclamando genocidas como grandes líderes heroicos, e tudo feito através de uma máquina política de corrupção também sem precedentes. O estranhamento diante de tal situação, essencialmente desumana, mas apresentada como “natural”, era a base da apatia de Mersaud diante da sociedade. A obra de Visconti era uma adaptação fiel da novela de Camus.
A Trilogia Alemã: o declínio da nação germânica
Depois de O Estrangeiro e sua abordagem fantástica dos efeitos da época sobre a psicologia de um homem, em sua produção seguinte, Visconti se voltaria frontalmente ao fenômeno político e histórico que surge apenas como um elemento exterior na obra de Camus: o momento de consolidação dos regimes fascistas europeus. Era o início de sua Trilogia Alemã, na qual o cineasta analisaria diferentes aspectos da história, da cultura e da sociedade no mundo germânico.
No magistral Deuses Malditos, de 1969, tendo abandonado as fronteiras italianas, o diretor se volta para a forma mais acabada que tomou aí o fascismo durante o governo de Adolf Hitler. O filme é uma obra-prima do cinema e um clássico dos filmes políticos.
Visconti analisa com perfeição o entrelaçamento da grande burguesia alemã com o nazismo, instrumento que concebeu para combater a classe operária, e como acaba por se integrar completamente na sua corrupção política e humana. Este episódio é uma ironia histórica bastante complexa e intrigante. A mesma classe social que financiou a subida de Hitler ao poder e o considerava como um maluco útil, tornou-se ela mesma nazista. É a versão alemã, imperialista e completamente decadente da forma bonapartista de governo que Karl Marx analisou em sua obra sobre o regime de Napoleão III, na França do século XIX. Tal fenômeno foi uma das manifestações da decadência da burguesia enquanto classe dirigente da sociedade, obrigada, diante da revolução iminente, a nomear um representante político que se coloca acima de suas instituições para arbitrar seus interesses, aniquilando, no processo, parte dessa mesma burguesia e levando toda burguesia e o país para a barbárie. É esta complexa manifestação de decadência histórica de toda uma classe social que Visconti toma como tema em Deuses Malditos.
No centro da obra está o clã dos von Essenbeck, uma das mais ricas e influentes famílias da burguesia alemã, dona de um império de siderurgia com dezenas de fábricas no país. Com a subida de Hitler ao poder, os von Essenbecks veem-se no centro de uma articulação política de importância central para o regime nazista, pois suas fábricas seriam uma peça chave na produção de armamentos para o exército.
Ao contrário de outros industriais, o patriarca da família, Joachim von Essenbeck, presidente das indústrias, não compartilha dos ideais políticos nazistas. Ele representa a parte anacrônica da burguesia que a própria classe teria que amputar para ir adiante na sua evolução política. Sua principal preocupação — como ele deixa claro em seu discurso de aniversário, no início do filme — é a simples manutenção do funcionamento de seu império, fazendo os acordos políticos que fossem necessários com os diferentes governos alemães, mas nunca aderindo de fato à ideologia de um grupo determinado. Suas alianças eram uma mera forma de sobrevivência, e não uma adesão ideológica.
Deuses Malditos: a disputa pelo poder na Alemanha nazista
Como irá ficar claro ao longo do filme, o governo nazista precisava de muito mais do que isso para colocar em prática sua política agressivamente imperialista, militarista e expansionista.
Essa era a opinião do patriarca, mas o grupo familiar era heterogêneo. Cada membro tinha sua própria opinião sobre a política a ser seguida pelas indústrias Essenbeck, e expressavam as diferentes tendências sociais e políticas da burguesia alemã no período.
Fazem parte do jogo diferentes parentes de Joachim. Frederich Bruckman é noivo da filha do patriarca, Sofia von Essenbeck, e ocupa um alto cargo administrativo nas usinas Essenbeck. Konstantin von Essenbeck é irmão de Joachim, um dos principais candidatos à sucessão na empresa e membro das S.A., as brigadas de assalto nazistas, forças paramilitares que foram as principais responsáveis pelo fortalecimento do Partido Nacional Socialista e pela subida de Hitler ao poder. O filho de Konstantin é Gunther, jovem com inclinações artísticas sem qualquer pretensão de administrar o negócio familiar. Há ainda seu primo, Martin, filho de Sofia e neto mais velho de Joaquim. É o único herdeiro das ações majoritárias do avô. Ele, porém, é uma figura sensível, de temperamento frágil, emocionalmente instável, inseguro, sem qualquer talento para a política ou a administração.
Compõe a família ainda o primo Herbert Thalmann, socialista e ferrenho opositor do regime nazista; além do ardiloso Aschenbach, parente distante de Joachim e membro da S.S. nazista. Sem ter qualquer participação direta na empresa, este último será uma espécie de representante e porta-voz do governo nazista junto aos diretores da siderúrgica.
O filme começa na mansão da família, em meio às comemorações do aniversário do patriarca, que coincide com a noite do incêndio criminoso ao Parlamento alemão, em 1933. Os jornais acusam os comunistas de serem os autores do atentado e começa uma caça às bruxas.
No meio da madrugada, a S.S. é enviada à residência para prender Herbert Thalmann por suas ligações com o Partido Comunista. Enquanto ele foge pela janela, um atirador misterioso assassina Joachim em sua cama, incriminando Thalmann. Este episódio mostra o aniquilamento da ala esquerda da família.
O massacre das tropas de assalto nazistas
Martin é agora o sócio majoritário, e todos aguardam que ele nomeie o real sucessor de Joachim: Frederich, um empresário oportunista típico, sem qualquer escrúpulo ou ideologia para conseguir ascender socialmente, ou Konstantin, que ambiciona colocar o império familiar a serviço das S.A. nazista e assim reforçar o seu poder político e econômico.
Manipulado pela mãe, Martin nomeia Frederich, cuja posição, porém, é frágil, já que ele não é membro da família.
Os movimentos políticos a partir daí giram em torno de três figuras, Konstantin, representante dos interesses das S.A.; Aschenbach, porta-voz dos interesses da S.S. e do governo; e Sofie, que busca consolidar o poder no noivo na direção da empresa.
Um problema político importante que surge no filme é a relação de disputa existente entre as S.A. e a S.S. As S.A. eram uma típica milícia fascista composta por civis, o braço armado do partido, mas com uma direção centralizada em certa medida, autônoma em relação à direção do Partido. Depois que Hitler torna-se chanceler, ele cria a S.S., uma força de elite ligada ao Exército e mais rigorosamente centralizada pelo grupo de Hitler. Depois de 1933, as S.A. começam a representar uma ameaça militar ao governo central, iniciando uma disputa aberta por influência no governo. A resposta de Hitler é o assassinato em massa destes oficiais no episódio que ficou conhecido como A Noite das Facas Longas, quando os membros das S.A. são mortos de surpresa após uma festa enquanto aguardam um acordo entre seus líderes e o governo. Uma das cenas de maior impacto do filme é o retrato deste episódio.
Konstantin é eliminado aí, morto pessoalmente por Frederich, que se alia às forças do governo. Apesar desta aliança entre Frederich e a S.S., Aschenbach considera, porém, que ele ainda não tem o perfil ideal para o cargo, já que este ainda pretende manter uma independência em relação à S.S. Uma solução encontrada por Aschenbach para solucionar este obstáculo é conseguir manipular o próprio Martin, colocando-o contra a mãe e Frederich.
Uma obra-prima do cinema político
Martin é facilmente fisgado pelos argumentos de Aschenbach, e não apenas derruba Frederich da direção da siderúrgica, como também ingressa ele mesmo na S.S., completando, assim, o processo de consolidação do controle do governo nazista sobre uma das indústrias mais poderosas do país e, por sua vez, a completa nazificação da burguesia que havia acreditado que o nazismo era apenas um joguete em suas mãos. Em uma das cenas mais dramáticas do filme, Martin estupra a própria mãe, Sofie, e obriga que, após seu casamento, ela e Frederich se suicidem. Martin é o futuro da burguesia alemã, a qual acabaria levando o país a um completo desastre.
Deuses Malditos, que no título original italiano é algo como “a queda dos deuses”, é o registro deste momento histórico da Alemanha, em que a burguesia perde o controle sobre seu próprio governo, que passa a ter um poder de decisão sobre ela de forma quase autônoma. A história dos von Essenbeck é o retrato da destruição daquela parcela da burguesia industrial alemã que não estava disposta a levar às últimas consequências a luta por tornar a Alemanha uma nação imperialista, que era o propósito político do nazismo e a evolução da burguesia para a barbárie nazista.
Com duas horas e meia de duração, o filme é uma obra superior não apenas no que diz respeito à análise política da consolidação do nazismo, mas também em sua abordagem psicológica das personagens, que são tipos sociais bastante representativos. Deuses Malditos é, vale ressaltar, uma criação extraordinária ainda do ponto de vista da fotografia, com uma coloração expressionista bastante característica, sutil, quase natural, mas perceptível durante todo o filme como um ingrediente adicional à atmosfera emocionalmente carregada, grave, opressiva, presente na obra. A iluminação mais constante em suas cenas é o vermelho entrecortado por amarelos, laranjas, verdes e azuis, luzes sob a qual as personagens surgem sempre em meio à penumbra. Muitos planos do filme são verdadeiras pinturas, como na festa das S.A. na Noite das Facas Longas; a sequência verdadeiramente teatral em que Martin estupra sua mãe; ou a imagem fantasmagórica do cadáver de Sofie abandonado no sofá.
Morte em Veneza, a busca pela juventude perdida
O segundo filme da Trilogia Alemã de Visconti foi também uma de suas mais belas realizações, Morte em Veneza, lançado em 1971 e baseado na obra homônima de Thomas Mann. O cineasta italiano passa aqui do tema político ao tema psicológico, a decadência pessoal de um homem. Com grande lirismo, Luchino Visconti narra a paixão platônica do escritor austríaco Gustav Aschenbach por Tadzio, um belo adolescente que vê durante uma temporada de férias que passa em Veneza. Aschenbach, consciente de já haver realizado o melhor de sua obra, vive um processo de decadência tanto física quanto intelectual, o que o leva a apegar-se à juventude, à beleza angelical, à inocência e vivacidade do rapaz que está hospedado com sua família no mesmo hotel que ele. O escritor vê no rapaz suas próprias buscas artísticas inalcançáveis pela beleza e perfeição.
O filme possui poucos diálogos e sua força maior reside em suas belas imagens ao som melancólico de Mahler, que acompanham a busca silenciosa de Aschenbach por Tadzio naquele paraíso veneziano. Este filme é bastante distinto na obra de Visconti, elevando a um novo patamar a ênfase nas imagens que sempre foi a marca registrada de seus filmes. Ao contrário de outras produções do cineasta, cuja importância repousa em sua trama, a qualidade fundamental de Morte em Veneza estava justamente em sua beleza plástica, elemento que é o principal fio condutor da obra.
O filme traz também elementos simbólicos que dão mais força ao clima de decadência e melancolia que permeiam a história. Ao mesmo tempo em que Aschenbach observa Tadzio enquanto vaga por Veneza, a cidade está sendo assolada por uma misteriosa praga que tem matado seus visitantes, enfermidade que os donos de hotéis e restaurantes locais procuram a todo custo manter em sigilo para não espantar os turistas. É esta forma interior de decadência, que consome subterraneamente a vida de Aschenbach e a sociedade europeia, que constitui o tema fundamental desta obra sem igual na filmografia de Visconti.
Luwdig, o crepúsculo da monarquia alemã
O terceiro e último filme desta trilogia alemã foi Ludwig: A Paixão de um Rei, a mais ambiciosa das superproduções de Luchino Visconti, com quase quatro horas de duração. O filme, de 1973, foi uma produção internacional da Itália, França e Alemanha e narrava o definhamento da monarquia alemã às vésperas da unificação, acompanhando a trajetória do famoso Ludwig II, o “rei louco” da Baviera, coroado em 1866. Conhecido por sua excentricidade, Ludwig II forneceu a Visconti todos os elementos ideais para narrar o declínio das pequenas nações alemães e sua aristocracia, colocadas a reboque da Prússia após 1870. Seu temperamento frágil, desinteresse pela política, aversão à guerra e paixão pela arte tornaram-no um símbolo desta decadência histórica, quando o líder político dava lugar ao esteta.
Nas duas décadas que durou seu reinado, Ludwig acolheu e financiou o grande compositor Richard Wagner durante o período mais importante de sua atividade, quando o músico concebeu suas obras-primas Tristão e Isolda e O Anel dos Nibelungos. Ludwig deixou também um importante legado arquitetônico, financiando a construção de suntuosos palácios e castelos, dentre os quais o do castelo de Neuschwanstein, empreendimentos que levariam seu reino à beira da falência. Deve-se a ele também a criação de um dos mais importantes teatros alemães até hoje, o Staatstheater am Gärtnerplatz. Tal iniciativa tornou a Baviera um dos mais importantes palcos alemães, elevando a qualidade do teatro produzido ali e promovendo regularmente grandes temporadas de espetáculos dramáticos e líricos.
Durante seu reinado, a Baviera tomou parte na Guerra Austro-Prussiana, em 1866, ao lado da Áustria, e na Guerra Franco-Prussiana, de 1870, ao lado da Prússia. Com o término dos conflitos e a derrota francesa, Ludwig foi um dos monarcas alemães a apoiar a unificação, submetendo-se ao governo central do Kaiser Guilherme I, da Prússia. Ele morreria sob circunstância misteriosas após sua deposição em 1886. Sua biografia, como um monarca que vira as costas para a política para cultivar suas paixões hedonistas, foi um produto deste processo avançado de deterioração espiritual que marcou toda a aristocracia decadente em finais do século XIX.
Violência e Paixão: o intelectual em sua ‘torre de marfim’
Após a Trilogia Alemã, Visconti retorna à Itália para a realização de seu penúltimo filme, de 1974, Violência e Paixão, outra de suas obras-primas. Ele retomaria aqui sob um ângulo distinto a mesma questão presente em Ludwig.
O filme, que se passa na Itália contemporânea, conta a história de um intelectual decadente, um cientista que, na juventude, se desiludiu com o sentido que tomava a ciência na sociedade moderna, voltada para alimentar a indústria da guerra. Agora velho, o professor isolara-se em seu palazzo em Roma, rodeado de livros, móveis luxuosos e obras de arte. Foi a maneira que encontrou para se manter afastado da mediocridade e da degradação de seu próprio tempo.
Tudo muda em sua vida quando surge na residência a ruidosa marquesa Bianca Brumonti, uma mulher tempestuosa, barulhenta, que insistentemente tenta convencê-lo a alugar o segundo andar de seu palazzo. Ele acaba cedendo a muito contragosto e imediatamente se vê envolvido entre uma confusão de pequenos dramas e problemas de todos os tipos envolvendo o jovem alemão Konrad, seu amante; Lietta, filha da condessa; e o namorado de Lietta, Stefano.
Esta pequena família aristocrática traz consigo toda a decadência, os vícios e a frivolidade em que está metida a burguesia italiana. Konrad, jovem temperamental de inclinações artísticas, é um ex-militante político do movimento de 1968 que se desmoralizou e abandonou a política. Agora, sustentado pela marquesa, vive em um mundo de prazeres sensuais, de aventuras, drogas, jogos, sexo, e envergonha-se profundamente de sua condição de “cachorro de madame”, uma nulidade social. Bianca, por sua vez, típica representação da frivolidade burguesa, é casada com um industrial milionário que faz parte de grupos da extrema direita fascista. Os outros dois jovens apenas completam este quadro, envolvendo-se em intermináveis brigas e disputas que acabam completamente com a tranquilidade, a rotina e a organização metódica do velho intelectual.
O professor, porém, apesar de desprezar a mentalidade e o modo de vida fútil da família, acaba gradualmente se envolvendo nestes pequenos dramas, afeiçoando-se particularmente a Konrad, que expressa a contradição dentro da família. Uma situação que coloca em xeque sua própria decisão de isolar-se daquele mundo de frivolidades cotidianas.
Luchino Visconti traz à cena nesta obra duas formas distintas de decadência, que, confrontadas, revelam a fragilidade da decisão do professor. Esta personagem é a representação de um tipo social comum, o intelectual da “torre de marfim”, que voltando às costas para a sociedade, procura se isolar em um mundo de beleza e sofisticação intelectual. No fundo, ele não era diferente de Konrad.
A família Brumonti, por seu lado, é esta própria sociedade, mostrada no filme em toda a sua vulgaridade e de forma quase expressionista no absurdo das situações em que se envolvem.
Ao final da obra, o professor, absolutamente perturbado com os conflitos que presencia, conclui o inevitável: o modo de vida solitário que construiu para si não tinha consistência alguma.
Em uma das últimas cenas do filme ele divaga: “o escritor, cujo livro mantenho ao lado da cama e leio de tempos em tempos, fala de um inquilino que se muda para o apartamento de cima. Assim que o inquilino se muda, olhando, andando, gradualmente sua ausência se torna mais rara, e sua presença mais constante. E ele está morto. A consciência de que ele tinha chegado ao fim da vida se anunciou com um dos disfarces traiçoeiros da morte. Sua presença [de Konrad] acima de mim significou o oposto, e não creio que tenha sido enganado. Vocês me acordaram de um sonho, tão profundo, tão insensível, e tão morto como a própria morte”. Ele condena sua própria atitude de isolamento nesta “torre de marfim”. A vida real, mesmo em toda a sua mediocridade, suas contradições e vícios, é ainda assim superior a uma vida artificialmente criada, à vida do recluso, do solitário que procura se abster da luta social, que é a própria essência da vida. Na sociedade, é preciso agir, e não divagar.
O Inocente, a opressão da mulher e a decadência do casamento burguês
O filme seguinte de Luchino Visconti seria também seu último trabalho, cujas filmagens forma concluídas poucas semanas antes de sua morte, em 1976. Era O Inocente, uma adaptação do romance homônimo de Gabriele D’Annunzio.
O filme voltava uma vez mais ao tema da decadência da família burguesa e da hipocrisia que permeia o casamento, destacando agora, porém, o ângulo da opressão da mulher. Ele analisa a decadência moral do homem burguês ao encarar a mulher como sua propriedade, manipulando-a de acordo com sua vaidade e seus caprichos.
A história se passa na Itália do final do século XIX e acompanha a crise do casamento de Túlio e Giovanna. Sem ver mais atrativos na esposa, Túlio se envolve em diversas aventuras amorosas até se apaixonar pela sensual Teresa. Desprezado por ela, que mantém outros amantes, Túlio confessa suas traições a Giovanna e busca nela um apoio moral para esquecer Teresa. Giovanna, porém, humilhada, envolve-se com um escritor. Ao perceber que Giovanna tinha também seus amantes, Túlio volta a cortejá-la e abandona a antiga amante. Ele tenta reconquistá-la, e em pouco tempo, descobre que ela está grávida. Obcecado com a ideia de que sua mulher amou outro homem, fica inconformado com o fato de que ela se recusa a abortar a criança. Depois que nasce o bebê, Túlio é incapaz de olha para ele, e todos os gestos de carinho de Giovanna com o filho são uma fonte inesgotável de tormento para o marido.
Certa noite, Túlio, após olhar longamente a criança com um ódio corrosivo, a abandona na sacada da casa, que morre exposta ao frio da noite nevada. A crise que se dá entre Túlio e Giovanna encerra qualquer possibilidade de uma retomada da relação.
Alguns dias mais tarde, ele conta calmamente toda a história a sua amante, Teresa, acrescentando que não se arrepende de nada. Em sua fala mais significativa, Teresa reflete: “está sempre tão seguro de si. Mas não sabemos nada do que o futuro nos reserva. Nem você. Há menos de um ano você passava as noites debaixo de minhas janelas, louco de desejo, de ciúmes. E eu cometia todo o tipo de bobagens para sufocar o meu amor por você. Quem sabe? Porque, vocês homens, com uma mão querem sempre nos elevar até às estrelas e nos arrastam para baixo com a outra. Porque não nos deixam caminhar ao vosso lado sobre a Terra, criatura ao lado de criatura? Mulher ao lado do homem?”. Surpreso, ele pergunta a ela porque não vai viver com ele, ao que Teresa responde tranquilamente: “mas eu não te amo mais, querido. Você é um monstro”.
De um modo geral, o filme destaca o aspecto da opressão feminina através desta história brutal de como um respeitável burguês manipula e destrói a vida de sua esposa, cujo único crime foi agir exatamente como ele diante do fracasso do casamento. O cinismo de Túlio, sua despreocupação em saber que aqueles acontecimentos levaram à ruína da esposa, traz à tona sua espantosa decadência moral, sua falta de escrúpulos em tratar a mulher como um brinquedo, jogando com ela e submetendo-a às suas conveniências. Esta é a denúncia que marca O Inocente.Luchino Visconti estava já nesta época com a saúde bastante abalada. Durante as filmagens de Ludwig, ele sofreu um AVC e vivia desde então em uma cadeira de rodas. Durante o período de montagem de O Inocente, sua saúde piorou consideravelmente. Tendo contraído uma gripe, após muitos dias convalescendo, morreu na noite de 17 de março de 1976, após ouvir durante horas um vinil com a Segunda Sinfonia de Brahms.