01.07.2025

Oswald de Andrade, a personificação da revolução na literatura

100 anos da poesia Pau-Brasil

Henrique Áreas de Araujo

A radicalização estética, o nacionalismo e a revolução no Brasil nos anos precedentes à Revolução de 30

Há 100 anos, Oswald de Andrade publicava seu primeiro livro de poesia, Pau-Brasil, colocando em prática as ideias defendidas em seu Manifesto da poesia Pau-Brasil, publicado um ano antes, em 1924.

O movimento modernista brasileiro acompanha as transformações revolucionárias do País no início do século XX. As inovações no terreno da arte são a expressão das transformações econômicas, sociais e políticas do Brasil, um país essencialmente agrário que começa, naquele momento, a desenvolver uma economia industrial que vai levá-lo a estar entre os mais industrializados do mundo poucas décadas depois.

Nesse sentido, as diferentes etapas do modernismo brasileiro são a expressão não apenas dessas mudanças, mas da própria revolução que precisa se desenvolver no País.

Entre todos os artistas que tiveram papel de proa no movimento modernista, foi Oswald de Andrade o que melhor personificou essas transformações. É como se as diferentes etapas da história do Brasil daquele período estivessem materializadas numa única personalidade. A evolução artística e política de Oswald de Andrade sintetiza as principais etapas daquele período. Oswald começa como um artista que faz parte do movimento geral de rebeldia em 1922 e vai evoluindo à esquerda até aderir ao Partido Comunista.

Semana de 22: marco inicial

O movimento em torno da Semana de 22 é o primeiro momento da revolta modernista, mas é apenas um ponto de partida. Ele liquida com a herança literária anterior e inaugura um novo período na história das artes e da intelectualidade brasileira.

O ponto de partida de 22 acompanha os primeiros sinais de transformações políticas que precedem a Revolução de 30. É o ano da Revolta do Forte de Copacabana, uma insurreição contra o governo Epitácio Pessoa na aparência, mas já um começo de um processo revolucionário profundo que se desenvolvia na sociedade brasileira. As décadas de 20 e 30 serão as mais revolucionárias da história do País.

A Semana de Arte Moderna de 22, da qual Oswald de Andrade é um dos protagonistas, acompanha, no terreno da intelectualidade, essas primeiras manifestações da revolução que iria estourar em 30. Nesse sentido, se a Revolta do Forte e a criação do PCB, também em 1922, são sintomas iniciais, porém contundentes, dessa revolução no terreno político e social, a Semana é parte do mesmo processo, mas no terreno das artes, da estética. São importantes sinais, mas são somente o marco inicial de uma transformação bem mais profunda que se seguirá.

A Poesia Pau-Brasil

Uma vez realizado o balanço e a crítica necessários da literatura brasileira até aquele momento, o Modernismo precisava evoluir para algum lugar. Como é natural, a partir da Semana aparecem diferentes escolas ou movimentos que procuram expressar cada um à sua maneira as inovações propostas em 22.

É em 1924 que Oswald de Andrade publica o sua Manifesto Pau-Brasil. Mais uma vez, mostrando estar alinhado com as transformações do País.

O ano de 24 marca já uma segunda etapa do processo revolucionário no Brasil, a revolução tenentista em São Paulo. Se os 18 do Forte foram um lampejo heroico dos jovens militares brasileiros, o episódio de 1924 já foi muito mais abrangente. Os revoltosos tomaram a cidade de São Paulo, derrubaram o governador, assumiram o controle da cidade e do estado e ocuparam militarmente a cidade com pouco efetivo militar. Aquele momento foi praticamente o início de uma guerra civil.

O governo Artur Bernardes mandou bombardear a cidade implacavelmente. Na sequência, as tropas que se retiraram de São Paulo se juntaram a Luís Carlos Prestes, dando início à Coluna Prestes. Ou seja, o movimento que se cria é de uma radicalização política superior à de 22.

É nesse ambiente político radicalizado que surge o Manifesto Pau-Brasil, o qual é uma radicalização das inovações apresentadas em 22. Como afirma Paulo Prado no prefácio de Pau-Brasil, “A poesia ‘Pau-Brasil’ é, entre nós, o primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro. Na mocidade culta e ardente de nossos dias, já outros iniciaram, com escândalo e sucesso, a campanha de liberdade e de arte pura e viva, a condição indispensável para a existência de uma literatura nacional. Um período de construção criadora sucede agora às lutas da época de destruição revolucionária, das ‘palavras em liberdade’”.

Esse primeiro esforço organizado tem uma preocupação principalmente estética, ainda mais se comparado aos períodos posteriores. Mas radicalidade da poesia proposta por Oswald é, sem dúvida, uma expressão do radicalismo político que toma conta do país em 24.

Os artistas da Semana de 22 mostravam uma preocupação estética mais abstrata. Queriam a libertação da forma, se inspiraram no futurismo e outras vanguardas europeias, combatiam, como podiam, a forma anterior do parnasianismo tradicional, já encastelado na burocracia acadêmica. A evolução no Manifesto Pau-Brasil, que se expressa no livro Pau-Brasil, é que ali já aparece um conteúdo nacionalista muito forte, que não está tão presente em 22, ou está colocado, mas como uma preocupação secundária.

Pau-Brasil apresenta a preocupação com a cultura nacional como central. Naquele momento, os intelectuais pensavam que a cultura brasileira não era satisfatória. Por isso, havia uma busca por compreender e desenvolver uma cultura nacional que fosse verdadeira.

A preocupação deles, embora muito legítima, é uma ilusão. Em certa medida, a cultura brasileira sempre foi nacional e, ao mesmo tempo, internacional. Mas para os Modernistas, era preciso criar uma cultura que para eles apareceria como uma genuína cultura brasileira.

O Manifesto Pau-Brasil é o esforço de Oswald e seus parceiros de movimento na busca por essa cultura. O nome do movimento não é uma escolha qualquer. A figura do Pau Brasil remete à busca por uma arte que não seja mais importada da Europa, mas que seja uma arte brasileira que seja exportada para outros países.

O Pau Brasil era material de exportação. Era aqui extraído e enviado para o resto do mundo. Era o primeiro material brasileiro exportado para o mundo. É daí que vem a ideia do nome do Movimento.

Com o tempo, Oswald vai notar que isso era insuficiente, que a arte genuinamente brasileira não poderia ser apenas um produto de exportação, mas uma síntese do que era feito no mundo todo, mas com a nossas próprias características. Com isso, ele vai evoluir para a Antropofagia.

A preocupação mais profunda com a nacionalidade acompanha a radicalização da situação política no País que por sua vez expressa as mudanças econômicas.

O Manifesto Pau-Brasil pretende fazer da cultura brasileira uma cultura de exportação, mas não de importação. Na concepção do movimento, o romantismo, o realismo, o parnasianismo e o simbolismo seriam apenas cultura de importação. O Pau-Brasil busca uma cultura própria, natural do Brasil, para exportar. Tudo de acordo com a concepção de Oswald e do movimento que vai posteriormente desenvolver e chegar a novas conclusões com a Antropofagia, que explica de maneira mais aprofundada o problema da cultura nacional.

“A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. […]

Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. […]

A língua sem arcaísmo, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.”

Manifesto Antropofágico

A preocupação nacionalista do Manifesto Pau-Brasil ganha uma característica ainda mais radical com a publicação, em 1928, do Manifesto Antropofágico, por Oswald. Aqui, a preocupação de que o Brasil não tem que ser um mero importador de arte, mas exportador, é desenvolvida em toda a sua radicalidade. Há uma evolução em relação ao Movimento Pau-Brasil. Se neste a preocupação nacionalista é meramente de exportação de uma cultura nacional, na Antropofagia, o nacionalismo é mais bem elaborado, é a preocupação de uma arte que recebe as influências do exterior e que as transforma em um produto novo.

Esse é o significado da alegoria do antropófago usada por Oswald. A ideia do antropófago é a de que a pessoa come o outro para produzir uma força própria. Seria assim com a cultura nacional: o brasileiro que recebe a cultura estrangeira, come-a e produz uma nova cultura, original, mas sem ignorar aquilo que foi produzido por outros povos, em particular a cultura europeia.

Estamos diante de uma radicalização estética acompanhada por uma radicalização política, muito evidente na concepção da cultura nacional também radical.

Sem medo de errar, é possível dizer aqui que Oswald de Andrade e os antropofagistas chegaram muito próximo de uma concepção científica do próprio funcionamento da arte nos países atrasados e até mesmo da arte em geral. Quer dizer, a arte é uma síntese resultante das interrelações entre várias culturas diferentes, que influenciam umas às outras. Apenas devemos acrescentar que essas influências serão determinadas em maior ou menor grau conforme o nível de desenvolvimento técnico e diversidade cultural de determinada sociedade.

Essa radicalização estética no movimento antropofágico acompanha também a radicalização política no País. Entre 1924 e 1929, o Brasil é um grande exportador com o café, que diferente dos produtos anteriores parece ser um produto que vai realmente enriquecer o País. Esses produtos anteriores (pau-brasil, açúcar, ouro) eram muito insuficientes para fazer enriquecer o País.

Essa ideia da burguesia nacional, em particular a paulista, não era de todo errada. Apesar da gigantesca crise do café a partir de 1929, foi ele que criou as bases econômicas para o desenvolvimento industrial do País. A cidade de São Paulo é a manifestação desse desenvolvimento. Por isso, diferentemente do que afirmam atuais detratores do movimento, que inventaram a tese do “paulistocentrismo”, um neologismo de péssimo gosto, diga-se de passagem, a ocorrência da Semana e dos principais movimentos modernos posteriores em São Paulo não é um acaso tampouco uma manobra de uma elite econômica.

O pleno florescimento das ideias modernistas em São Paulo está intimamente ligado ao desenvolvimento do Estado e da cidade de São Paulo, que ademais tem que ser compreendido como o desenvolvimento do próprio País.

Os modernistas achavam que estava na hora de o Brasil tornar-se um exportador também na cultura.

Além desse cenário político e econômico, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, principais nomes da Antropofagia, viajaram muito para a Europa, trazendo de lá influências das vanguardas da época. Foram os dois que estabeleceram amizade com o poeta francês, Blaise Cendars, importante influência para evolução do movimento. Cendars veio ao Brasil, participando da viagem dos modernistas a Minas Gerais.

A imaginação de Oswald de Andrade faz com que ele passe do pau-brasil, produto de exportação, para a figura do índio, a figura do antropófago como um símbolo do que eles entendiam como a arte nacional. Continua a ideia da cultura de exportação, mas destaca que é preciso continuar consumindo do estrangeiro e criando, a partir daí, uma arte nova.

Essa mudança mostra bem a radicalização ideológica. O Manifesto é de 1928, que é o momento imediatamente anterior à crise de 1929 que muda o panorama intelectual geral.

Quarta fase: O Homem do Povo

A quarta fase de Oswald de Andrade, é a publicação do jornal O Homem do Povo, em 1931. Nesse momento, a balança entre as preocupações estéticas e as preocupações políticas se desequilibra totalmente a favor destas últimas.

Ele faz o jornal com Patrícia Galvão, a Pagu, uma escritora e militante política. É um jornal político, como o próprio nome diz. Aqui, Oswald já está filiado ao Partido Comunista. A radicalização é tão intensa que Oswald acaba se aproximando do trotskismo, já que Pagu era militante do grupo trotskista que acabara de romper com o PCB.

A participação de Oswald no PCB acaba sendo caracterizada como um desencontro entre ele e o Partido, já que o PCB rapidamente se degenerava graças à política da burocracia stalinista. Esse desencontro acontecia em particular nas concepções artísticas do Partido, a ideia do Realismo Socialista e de que as vanguardas eram expressões degeneradas da arte e da cultura, algo que ia na contramão de tudo o que Oswald defendia. O escritor nunca se enquadrou nas ideias stalinistas sobre a arte, mantendo-se fiel ao seu vanguardismo. Independentemente disso, o ingresso no PCB mostra a evolução política e a radicalização de Oswald.

Mas qual a relação entre o nacionalismo e o Partido Comunista? Esse é o aspecto mais interessante da relação entre política e cultura nesse período. A Revolução de 30 foi um fracasso do ponto de vista dos seus objetivos. Ela não consegue realmente realizar uma revolução burguesa, ou seja, levar até o fim as reivindicações democráticas no País. Getúlio assume, faz uma aliança com os latifundiários, não ataca a estrutura fundiária do País, investe dinheiro do tesouro nacional para recuperar o café. Queima dezenas de milhões de toneladas de café para valorizá-lo diante da crise internacional. Uma operação econômica na tentativa de salvar o regime econômico anterior, o que acaba sendo um fiasco. O café está irremediavelmente perdido e deixará de ser importante na economia nacional, forçando o Brasil a evoluir para a industrialização.

Esse fracasso da Revolução de 30 é explicado pela Teoria da Revolução Permanente explica: a burguesia não consegue levar até o fim a revolução porque ao lado dela está a classe operária.

Com medo da classe operária, a burguesia freia a revolução. Isso significa que para que a revolução vá até o fim, inclusive no que diz respeito às reivindicações da revolução burguesa, a classe operária precisa tomar à frente do processo.

Esse problema se expressa na própria evolução de Oswald e de outros intelectuais, a maioria vinda de setores da burguesia. Um setor que começa na revolução burguesa, ou seja, com uma preocupação e busca por uma arte e cultura nacionalista, como Oswald de Andrade, que era ele mesmo um burguês, um especulador do café, evolui para ser um militante de um partido proletário.

A história do próprio Oswald de Andrade é como uma síntese da história do Brasil naquele período se desenvolvendo numa só pessoa. Começa com um movimento de rebeldia, em 22, o ano de movimentos diversos de rebeldia, vai evoluindo cada vez mais à esquerda com os dois manifestos, a Revolução de 30 fracassa e ele evolui para o partido comunista. Tudo isso é freado pelo golpe de Estado de Getúlio em 1937.

A importância da revolução formal

Não há uma radicalização política imediata, é uma constante de vários movimentos literários. É uma radicalização estética, da forma literária. É a maneira como os artistas em geral interpretam e expressam esse movimento revolucionário. Isso obedece à seguinte ideia: para um novo conteúdo é necessária uma nova forma.

Não há radicalização artística que não tenha como base a radicalização formal. Marca inicial da revolução artística é a radicalização da forma. Isso fica muito claro na esquerda modernista. Já a direita não é assim: ela participa da radicalização inicial da forma, porém gradativamente vai caindo num conservadorismo.

Compreender essa evolução dos diferentes movimentos do Modernismo brasileiro, à esquerda e à direita permite ver bem claramente o problema da importância da radicalização da forma para o desenvolvimento da arte. Diferente do que pregaram os ideólogos stalinistas do realismo, que menosprezavam a forma e acreditavam ser possível um conteúdo revolucionário sem uma forma revolucionária.

Em suma, um processo revolucionário é revolucionário em todos os sentidos, em todas as esferas sociais, na política, mas também na forma artística.

Manifesto da Poesia Pau-Brasil

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.

O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.

Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos.

Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.

O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.

A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.

Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.

A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica, donas de casa tratando de cozinha.

A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.

Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de base e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.

Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia.

A poesia Pau-Brasil, ágil e cândida. Como uma criança.

Uma sugestão de Blaise Cendrars: – Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio

rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.

Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias.

A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.

Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros.

Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.

Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo.

Copiar. Quadro de carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho… Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas.

Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotográfico.

Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Straviski. 

A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.

Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.

Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: a) a deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarrmé, Rodin e Debussy até agora. a) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva.

O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.

Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.

A síntese

O equilíbrio

O acabamento de carrosserie

A invenção

A surpresa

Uma nova perspectiva

Uma nova escala

Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil.

O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.

Uma nova perspectiva.

A nova, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão de ótica. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.

Uma nova escala:

A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças nos colos. O reclame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails.

Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte.

A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo monstruoso. O romance de idéias, uma mistura. O quadro histórico, uma aberração. A escultura eloqüente, um pavor sem sentido.

Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.

Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.

A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.

Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.

Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que o bicho vem pegá” e de equações.

Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil.

Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil. 

O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.

Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.

O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito.

O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.

A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.

Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.

Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.

Oswald de Andrade

(Correio da Manhã, 18 de março de 1924.)

Seleção de poemas de Pau-Brasil

Escapulário

No Pão de Açúcar

De Cada Dia

Dai-nos Senhor

A Poesia

De Cada Dia

Falação

O Cabralismo. A civilização dos donatários. A Querência e a Exportação.

O Carnaval. O Sertão e a Favela. Pau-Brasil. Bárbaro e nosso.

A formação étnica rica. A riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.

Toda a história da Penetração e a história comercial da América. Pau-Brasil.

Conta a fatalidade do primeiro branco aportado e dominando diplomaticamente as selvas selvagens. Citando Virgílio para tupiniquins. O bacharel.

País de dores anônimas. De doutores anônimos. Sociedade de náufragos eruditos.

Donde a nunca exportação de poesia. A poesia emaranhada na cultura. Nos sipós das metrificações. 

Século XX. Um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como babéis de borracha. Rebentaram de anciclopedismo.

A poesia para os poetas. Alegria da ignorância que descobre. Pedr’Álvares.

Uma sugestão de Blaise Cendrars: – Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.

Contra o gabinetismo, a palmilhação dos climas.

A língua sem arcaísmo. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros.

Passara-se do naturalismo à pirogravura doméstica e à kodak excursionista.

Todas as meninas prendadas. Virtuoses de piano de manivela.

As procissões saíram do bojo das fábricas.

Foi preciso desmanchar. A deformação através do impressionismo e do símbolo. O lirismo em folha. A apresentação dos materiais.

A coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.

Contra a argúcia naturalista, a síntase. Contra a cópia, a invenção e a surpresa.

Uma perspectiva de outra ordem que a visual. O correspondente ao milagre físico em arte. Estrelas fechadas nos

negativos fotográficos.

E a sábia preguiça solar. A reza. A energia silenciosa. A hospitalidade.

Bárbaros, pitorescos e crédulos. Pau-Brasil. A floresta e a escola. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.

A descoberta

Seguimos nosso caminho por este mar de longo

Até a oitava da Páscoa

Topamos aves

E houvemos vista de terra

Os selvagen

Mostraram-lhes uma galinha

Quase haviam medo dela

E não queriam por a mão

E depois a tomaram como espantados

Primeiro chá

Depois de dançarem

Diogo Dias

Fez o salto real

As meninas da gare

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis

Com cabelos mui pretos pelas espáduas

E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas

Que de nós as muito bem olharmos

Não tínhamos nenhuma vergonha

País do ouro

Todos têm remédio de vida

E nenhum pobre anda pelas portas

A mendigar como nestes Reinos

Vício na fala

Para dizerem milho dizem mio

Para melhor dizem mió

Para pior pió

Para telha dizem teia

Para telhado dizem teiado

E vão fazendo telhados

O recruta

O noivo da moça

Foi para a guerra

E prometeu se morresse

Vir escutar ela tocar piano

Mas ficou para sempre no Paraguai

Caso

A mulatinha morreu

E apareceu

Berrando no moinho

Socando pilão

O gramático

Os negros discutiam

Que o cavalo sipantou

Mas o que mais sabia

Disse que era

Sipantorrou

Cena

O canivete voou

E o negro comprado na cadeia

Estatelou de costas

E bateu coa cabeça na pedra

O capoeira

– Qué apanhá sordado?

– O quê?

– Qué apanhá?

Pernas e cabeça na calçada

Medo da senhora

A escrava pegou a filhinha nascida

Nas costas

E se atirou no Paraíba

Para que a criança não fosse judiada

A roça

Os cem negros da fezenda

comiam feijão

Abóbara chicória e cambuquira

Pegavam uma roda de carro

Nos braços

azorrague

– Chega! Perdoa!

Amarrados na escada

A chibata preparava os cortes

Para a salmoura

Relicário

No baile da Corte

Foi o Conde d’Eu quem disse

Pra Dona Benvinda

Que farinha da Suruí

Pinga de Parati

Fumo de Baependi

Ê comê bebê pitá e caí

Noturno

Lá fora o luar continua

E o trem divide o Brasil

Como um meridiano

Prosperidade

O café é o ouro silencioso

De que a geada orvalhada

Arma torrefações ao sol

Passarinhos assoviam de calor

Eis-nos chegados à grande terra

Dos cruzados agrícolas

Que no tempo de Fernão Dias

E da escravidão

Plantaram fazendas como sementes

E fizeram filhos nas senhoras e nas escravas

Eis-nos diante dos campos atávicos

cheios de galos e de reses

Com porteiras e trilhos

Usinas e igrejas

Caçadas e frigoríficos

Eleições tribunais e colônias

Paisagem

O cafezal é um mar alinhavado

Na aflição humorística dos passarinhos

Nuvens constroem cidades nos horizontes dos carreadores

E o fazendeiro olha os seus 800 000 pés coroados

Bucólica

Agora vamos correr o pomar antigo

Bicos aéreos de patos selvagens

Tetas verdes entre folhas

E uma passarinhada nos vaia

Num tamarindo

Que decola para o anil

Árvores sentadas

Quitandas vivas de laranjas maduras

Vespas

Escola rural

As carteiras são feitas para anõezinhos

De pé no chão

Há uma pedra negra

Com sílabas escritas a giz

A professora está de licença

E monta guarda a um canto numa vara

A bandeira alvi-negra de São Paulo

Enrolada no Brasil

Pai negro

Cheio de rótulas

Na cara nas muletas

Pedindo duas vezes a mesma esmola

Porque só enxerga uma nuvem de mosquitos

Assombração

6 horas

O Domingos Papudo

E a besta preta

Nadando no vento

Lei

Depois da criação do município novo

Plantado depressa nas ruas de poeira

Os bebês inumeráveis da colônia

Serão registrados em Pradópolis

Tragédia passional

Hoje acendem velas

Na cruz no mato

E há uma inscrição

Dizendo que o cadáver da moça

Foi achado nel Rio del’Onza

O violeiro

Vi a saída da lua

Tive um gosto singulá

Em frente da casa tua

São vortas que o mundo dá

A laçada

O Bento caiu como um touro

No terreiro

E o médico veio de Chevrolé

Trazendo um prognóstico

E toda a minha infância nos olhos

Versos de dona Carrie

A neblina nos segue como um convidado

Mas há um clarão para as bandas de Loreto

Cafezais

Cidades

Que a Paulista recorta

Coroa colhe e esparrama em safras

A nova poesia anda em Gofredo

Que nos espera da Forde

Numa roupa de fazenda

É ele quem cuida da plantação

E organiza a sarraria como um poema

O time feminino nos bate

Mas Cendrars faz a última carambola

Soldado de todas as guerras

Foi ele quem salvou a França na Champagne

E os homens na partida de bilhar daquela noite

Terraço

Rede

Paineiras pelo céu

As estrelas de Gonçalves Dias

Metalúrgica

1 300° à sombra dos telheiros retos

12 000 cavalos invisíveis pensando

40 000 toneladas de níquel amarelo

Para sair o nível das águas esponjosas

E uma estrada de ferro nascendo do solo

Os fornos estroncados

Dão o gusa e a escória

A refinação planta barras

E lá embaixo os operários

Forjam as primeiras lascas de aço

3 de maio

Aprendi com meu filho de dez anos

Que a poesia é a descoberta

Das coisas que eu nunca vi

Poema do santuário

Já estive diversas vezes na Aparecida

Onde há uma velha luta

Que é uma antiga disputa

Entre duas casas comerciais

Que querem ao mesmo tempo ser

Na ladeira se sol

A Verdadeira Casa Verde

Ditirambo

Meu amor me ensinou a ser simples

Como um largo de igreja

Onde não há nem um sino

Nem um lápis

Nem uma sensualidade

Guararapes

Japoneses

Turcos

Miguéis

Os hotéis parecem roupas alugadas

Negros como num compêndio de história pátria

Mas que sujeito loiro

Walzertraum

Aqui dá arroz

Feijão batata

Leitão e patarata

Passam 18 trens por dia

Fora os extraordinários

E o trem leiteiro

Que leva leite para todos os bebês do Rio de Janeiro

Apitos antigos apitam

Sentimentalmente

Eu gosto dos santuários

Das viagens

E de alguns hotéis

O Bertolini’s em Nápoles

O d’Angleterre em Caen

Onde Brummel morreu

O hotél da Viúva Fernanda na Aparecida

E um hotel sem nome

Na fronteira de Portugal

Onde uma mulher bonita

Quis fazer pipi

Pela primeira vez

Fim e começo

A noite caiu com licença da Câmara

Se a noite não caísse

Que seriam dos lampiões?

Cidade

Foguetes pipocam o céu quando em quando

Há uma moça magra que entrou no cinema

Vestida pela última fita

Conversas no jardim onde crescem bancos

Sapos

Olha

A iluminação é de hulha branca

Mamães estão chamando

A orquestra rabecoa na mata

Bonde

O transatlântico mesclado

Dlendlena e esguisha luz

Postretutas e famias sacolejam

Capital da República

Temperatura de bolina

O orgulho de ser branco

Na terra morena e conquistada

E a saída para as praias calçadas

Arborizadas

A Avenida se abana com as folhas miúdas

Do Pau-Brasil

Políticos dormem ao calor do Norte

Mulheres se desconjuntam

Bocas lindas

Sujeitos de olheiras brancas

O Pão de Açúcar artificial

Nossa senhora dos cordões

Evoé

Protetora do Carnaval em Botafogo

Mãe do rancho vitorioso

Nas pugnas de Momo

Auxiliadora dos artísticos trabalhos

Do barracão

Patrona do livro de ouro

Proteje nosso querido artista Pedrinho

Como o chamamos na intimidade

Para que o brilhante cortejo

Que vamos sobremeter à apreciação

Do culto povo carioca

E da Imprensa Brasileira

Acérrima defensora da Verdade e da Razão

Sejo o mais luxuoso novo e original

E tenha o veredictum unânime

No grande prélio

Que dentro de poucas horas

Se travará entre as hostes aguerridas

Do Riso e da Loucura

Pobre alimária

O cavalo e a carroça

Estavam atravancados no trilho

E como o motorneiro se impacientasse

Porque levava os advogados para os escritórios

Desatravancaram o veículo

E o animal disparou

Mas o lesto carroceiro

Trepou na boléia

E castigou o fugitivo atrelado

Com um grandioso chicote

Anhangabaú

Sentados num banco da América folhuda

O cow-boy e a menina

Mas um sujeito de meias brancas

Passa depressa

No Viaduto de ferro

Fotógrafo ambulante

Fixador de corações

Debaixo de blusas

Álbum de dedicatórias

Marquereau

Tua objetiva pisca-pisca

Namora

Os sorrisos contidos

És a glória

Oferenda de poesias às dúzias

Tripeça dos Logradouros públicos

Bicho debaixo da árvore

Canhão silencioso do sol

A Europa curvou-se ante o Brasil

7 a 2

3 a 1

A injustiça de Cette

4 a 0

2 a 1

2 a 0

3 a 1

E meia dúzia na cabeça dos portugueses

Pronominais

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas do bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro

Aperitivo

A felicidade anda a pé

Na praça Antônio Prado

São 10 horas azuis

O café vai alto como a manhã de arranha-céus

Cigarros Tietê

Automóveis

A cidade sem mitos

Ideal bandeirante

Tome este automóvel

E vá ver o Jardim New-Garden

Depois volta à Rua da Boa Vista

Compre o seu lote

Registe a escritura

Boa firme e valiosa

E more nesse bairro romântico

Equivalente ao célebre

Bois de Boulogne

Prestações mensais

Sem juros

Digestão

A couve mineira tem gosto de bife inglês

Depois do café e da pinga

O gozo de acender a palha

Enrolando o fumo

De Barbacena ou de Goiás

Cigarro cavado

Conversa sentada

Convite

São João del Rei

A fachada do Carmo

A igreja branca de São Francisco

Os morros

O córrego do Lenheiro

Ide a São João del Rei

De trem

Como os paulistas foram

A pé de ferro

Imutabilidade

Moça bonita em penca

Sete-lagoas

Sabará

Caetés

O córrego que ainda tem ouro

Entre a estação e a cidade

E o mequetrefe

Vai tocar viola nas vendas

Porque a bateia está ali mesmo

Casa de Tiradentes

A Inconfidência

No Brasil do ouro

A história morta

Sem sentido

Vazia como a casa imensa

Maravilhas coloniais nos tetos

A igreja abandonada

E o sol sobre muros de laranja

Na paz do capim

Ouro Preto

Vamos visitar São Francisco de Assis

Igreja feita pela gente de Minas

O sacristão que é vizinho de Maria Cana-Verde

Abre e mostra o abandono

Os púlpitos do Aleijadinho

O teto do Ataíde

Mas a dramatização finalizou

Ladeiras do passado

Esquartejamentos e conjurações

Sob o Itacolomi

Nos poços mecânicos policiados

Da Passagem

E em alguns maus alexandrinos

Só o Morro da Queimada

Fala do Conde de Assumar

Congonhas do Campo

Há um hotel novo que se chama York

E lá em cima na palma da mão da montanha

A igreja no círculo arquitetônico dos Passos

Painéis quadros imagens

A religiosidade no sossego do sol

Tudo puro como o Aleijadinho

Um carro de boi canta como um órgão