15.02.2025

Revolução argelina completa 70 anos inspirando insurreições no mundo inteiro

África

Thiago Assad

Inspirados pela vitoriosa campanha de libertação da Indochina, árabes iniciavam na madrugada do dia 1º de novembro de 1954, uma guerra cruenta, mas que terminaria com uma impressionante vitória do povo argelino

Nas primeiras horas do dia 1º de novembro de 1954, entre a meia-noite e às 2 da madrugada, ocorreu uma série de 30 ataques coordenados nas principais cidades da Argélia, em prédios públicos, policiais e militares, resultando na morte de pelo menos 10 pessoas. O dia ficaria marcado como o “Dia de todos os santos vermelho”, em alusão ao feriado católico que lembra o martírio dos cristãos (1º de Novembro) e seria respondido pelo imperialismo francês com o envio de dezenas de milhares de soldados para o país árabe, o que daria início à Guerra da Argélia. Liderada pela Frente Nacional de Libertação da Argélia (FNL), a escolha do momento se devia muito mais a questões mais materialistas, apesar do simbolismo da data fatídica.

No mesmo dia, a FNL divulgava a seguinte mensagem em estações de rádio e panfletos por toda a Argélia, apresentando o programa do partido revolucionário, os motivos do ataque e os objetivos da guerrilha:

“Ao povo argelino,

Aos militantes da Causa Nacional!

Após décadas de luta, o Movimento Nacional atingiu sua fase final de realização.

um grupo de jovens responsáveis e militantes dedicados, reunindo ao seu redor a maioria dos elementos íntegros e resolutos, julgou que chegou o momento de tirar o Movimento Nacional do impasse em que foi forçado pelos conflitos de pessoas e de influências, e lançá-lo na verdadeira luta revolucionária ao lado dos irmãos marroquinos e tunisianos.…

Nosso movimento de regeneração se apresenta sob o rótulo de:

FRENTE DE LIBERTAÇÃO NACIONAL

assim se libertando de qualquer possível compromisso, e oferecendo a todos os patriotas argelinos de todas as posições sociais e de todos os partidos… a possibilidade de se unirem à luta nacional.

Objetivo: Independência nacional por meio de:

  1. restauração do estado argelino, soberano, democrático e social, no âmbito dos princípios do Islã;
  2. preservação de todas as liberdades fundamentais, sem distinção de raça ou religião.

Objetivos internos:

  1. limpeza política através da destruição dos últimos vestígios de corrupção e reformismo, as causas de nossa decadência atual.…

Objetivos externos:

  1. internacionalização do problema argelino;
  2. busca pela unidade norte-africana em seu contexto árabe-islâmico nacional;
  3. afirmação, através da Carta das Nações Unidas, de nossa simpatia ativa em relação a todas as nações que possam apoiar nossa ação libertadora.

Meios de luta:

por todos os meios até a realização de nosso objetivo… ação no exterior para tornar o problema argelino uma realidade para o mundo inteiro, com o apoio de nossos aliados naturais… a luta será longa, mas o resultado é certo… a fim de limitar o derramamento de sangue, propomos uma plataforma honrosa de discussão com as autoridades francesas.…

  1. reconhecimento da nacionalidade argelina por meio de uma declaração oficial;
  2. abertura de negociações… com base no reconhecimento da soberania argelina, uma e indivisível;
  3. libertação de todos os prisioneiros políticos.…

Em troca do que:

  1. os interesses culturais e econômicos franceses serão respeitados, assim como as pessoas e as famílias;
  2. todos os cidadãos franceses que desejarem permanecer na Argélia poderão optar por sua nacionalidade original, caso em que serão considerados estrangeiros, ou por nacionalidade argelina, caso em que serão considerados argelinos tanto em direitos quanto em deveres;
  3. os laços entre a França e a Argélia serão definidos por acordo entre as duas potências, com base na igualdade e no respeito mútuo! Argelinos! Convidamos vocês a meditar sobre nossa Carta exposta acima. É seu dever associar-se a ela para salvar nosso país e devolver-lhe sua liberdade. A FRENTE DE LIBERTAÇÃO NACIONAL é seu front, sua vitória é sua…”

Naquele mesmo ano, terminava a Guerra da Indochina (1946-1954), território que compreende os atuais estados do Vietnã, Laos, Camboja, Tailândia, Malásia, Singapura e Mianmar, cuja guerra de libertação do jugo colonial encerraria um longo e extremamente dispendioso conflito, responsável por drenar da França cerca de 1,2 bilhão de dólares anualmente, totalizando aproximadamente 9,6 bilhões de dólares ao longo de oito anos (mais de 113,45 bilhões em valores atuais, corrigidos pela inflação). As cifras constam do relatório do governo norte-americano Report to the National Security Council by the Department of State, de 5 de agosto de 1953 e encontra-se disponível no sítio governamental Office of the Historian.

Além das perdas financeiras, a França sofreu aproximadamente 148 mil baixas durante o conflito, incluindo mortos, feridos e desaparecidos. A derrota culminou na rendição em Dien Bien Phu, em 7 de maio de 1954, e na subsequente assinatura dos Acordos de Genebra, que puseram fim ao domínio francês na Indochina, o que terminou servindo de inspiração para movimentos nacionalistas em outras colônias francesas, como na mais importante de todas: a Argélia.

Atentos aos sinais de enfraquecimento do imperialismo francês, em abril de 1954, nove personalidades argelinas se unem para formar a Frente de Libertação Nacional (FLN). Eram eles:

Mohamed Boudiaf: Ativista político, esteve envolvido no Partido do Povo Argelino (PPA) e na Organização Especial (OS), grupos que buscavam a independência argelina.

Mostefa Ben Boulaïd: Veterano da Segunda Guerra Mundial, serviu no exército francês e, após o conflito, engajou-se no movimento nacionalista, liderando a OS na região de Aurès.

Didouche Mourad: Engenheiro de formação, participou do PPA e da OS, destacando-se como um dos líderes jovens mais proeminentes do movimento.

Rabah Bitat: Operário ferroviário, envolveu-se no movimento sindical e no PPA, contribuindo para a organização de atividades revolucionárias.

Krim Belkacem: Pastor de profissão, tornou-se líder da resistência na Cabília, participando da OS e desempenhando papel crucial na luta armada.

Larbi Ben M’Hidi: Atuou na OS e foi um dos principais organizadores da insurreição em Argel, sendo fundamental na coordenação das operações urbanas.

M’Hamed Bougara: Envolvido no movimento nacionalista, contribuiu para a mobilização e organização das forças revolucionárias.

Abdelhafid Boussouf: Participou da OS e foi responsável pela criação dos serviços de inteligência da FLN, desempenhando papel estratégico na guerra de independência.

Ahmed Ben Bella: Ex-sargento do exército francês, participou da fundação da OS e esteve envolvido em atividades revolucionárias, tornando-se uma figura central na FLN.

Provenientes de diferentes origens sociais, esses militantes uniram-se com o objetivo comum de libertar a Argélia do domínio colonial francês, formando a FLN em 1954 e iniciando a luta pela independência no mesmo ano, culminando no 1º de novembro. Ministro do Interior à época, François Mitterrand, futuro presidente francês entre 1981 a 1995, reagiu esclarecendo que mesmo ferido pela derrota na Indochina, o imperialismo não estava disposto a ceder. “Argélia é França”, afirmou, indicando que a repressão seria sangrenta. Não poderia ser diferente.

Os mais de 2,38 milhões de quilômetros quadrados do território argelino eram a principal fonte de recursos naturais para a indústria francesa. Minérios como ferro, fosfato (muito utilizado na indústria de fertilizantes) e chumbo (amplamente utilizado pela indústria automobilística e de eletroeletrônicos) eram extraídos da colônia a custo irrisório, fazendo a fortuna dos capitalistas franceses. Além disso, jazidas de petróleo foram descobertas no país, como o ainda em exploração campo de Hassi Messaoud, com capacidade estimada em mais de 6,4 bilhões de barris de petróleo, uma riqueza que o imperialismo francês simplesmente não podia perder.

Com o mesmo espírito de Mitterrand, o primeiro-ministro francês Pierre Mendès France declarou na Assembleia Nacional:

“Se trata de defender a paz interna da nação, a unidade e a integridade da República. Os departamentos argelinos fazem parte da República Francesa. Eles são franceses há muito tempo e são irrevogavelmente franceses… Entre eles e a França metropolitana não pode haver secessão concebível.”

O governo francês reforçou sua presença militar enviando tropas para suprimir a insurgência. Imediatamente, saltaram de 56 mil para mais de 83 mil soldados (atingiriam um contingente ainda maior ao longo do conflito). As autoridades coloniais implementaram medidas repressivas, incluindo prisões em massa, torturas e censura da imprensa, na tentativa de conter o movimento independentista.

Outro braço de sustentação do imperialismo seria o Partido Comunista. Órgão do Partido Comunista Argelino, Alger Républicain classifica o ato de lançamento da Guerra da Argélia como a “tragédia do Dia de Todos os Santos”, atribuindo-o a “provocadores”, “semeadores de pânico” e “um punhado de agitadores inconscientes ou corruptos” e convoca as autoridades coloniais para que “apelem às massas para a aniquilação da rebelião”.  Fosse uma questão meramente numérica, na ocasião, não teria sido uma tarefa muito complexa para o imperialismo francês atender os “comunistas”.

Segundo a obra A Savage War of Peace: Algeria, 1954–1962 (“Uma guerra selvagem de paz: Argélia, 1954-1962”, sem tradução para o português), escrita pelo historiador britânico Sir Alistair Allan Horne, destaca as condições precárias em que o FNL começou a campanha que resultaria na maior derrota até hoje sofrida pelo poderoso imperialismo francês:

“Ben Bella afirmou que o FLN iniciou a revolta com apenas 350 a 400 armas de fogo diversas e praticamente nada mais pesado do que uma metralhadora. Vale a pena observar que, nesta fase ou por vários anos, nenhuma arma foi fornecida pelo bloco comunista; nem uma quantidade significativa de armas foi adquirida em outros lugares no exterior com os fundos escassos do F.L.N. Assim, desde o início, o roubo de armas francesas de depósitos ou sua recuperação no campo de batalha tornou-se um objetivo militar primordial.”

Além dos ataques iniciais que marcaram o início da guerra, a FLN ampliou suas operações ao longo dos meses seguintes, atingindo não apenas alvos militares, mas também civis europeus e muçulmanos considerados colaboracionistas. Em dezembro de 1954, uma série de explosões atingiu cafeterias frequentadas por franceses em Argel e Constantine, matando pelo menos 15 pessoas. Esse aumento da violência levou o governador-general da Argélia, Jacques Soustelle, a solicitar reforços imediatos, resultando no envio de 20 mil soldados adicionais ao território.

Os atentados seguiram as táticas da guerra de guerrilha, visando desmoralizar as autoridades coloniais e atrair a atenção internacional para a causa independentista. Em 1955, um dos episódios mais violentos ocorreu em Philippeville, onde combatentes da FLN mataram cerca de 120 pessoas, incluindo mulheres e crianças francesas. A repressão francesa foi brutal: em resposta, o exército lançou uma ofensiva que deixou mais de 12 mil argelinos mortos, a maioria deles, civis inocentes.

A resposta inicial da França à insurreição argelina foi caracterizada por uma repressão brutal e um aumento significativo da presença militar. Nas semanas seguintes ao 1º de novembro de 1954, cerca de 2 mil argelinos foram presos e mais de 500 foram executados sumariamente, de acordo com relatórios das autoridades coloniais e estimativas de historiadores.

Tropas adicionais foram enviadas à Argélia, elevando rapidamente o contingente militar de 83 mil para mais de 100 mil homens já em janeiro de 1955. As forças coloniais impuseram toque de recolher, realizaram batidas sistemáticas em bairros e aldeias suspeitas de abrigar insurgentes e adotaram táticas de represália coletiva, incendiando vilarejos inteiros onde se suspeitava haver apoio ao FNL.

A FLN também apostou na guerra psicológica. Em 1956, os atentados na capital se intensificaram, incluindo explosões simultâneas em estabelecimentos franceses. Em setembro do mesmo ano, o atentado ao Café Milk-Bar, no centro de Argel, matou três pessoas e feriu 50.

A repressão se intensificou ao longo de 1955. Após o Massacre de Philippeville, em agosto daquele ano, tropas e colonos franceses massacraram entre 12 mil e 15 mil argelinos, segundo o próprio comandante das forças coloniais, general André Zeller. Prisões em massa levaram à superlotação dos centros de detenção, onde prisioneiros eram torturados sistematicamente. Testemunhos de ex-militares franceses, como os do general Paul Aussaresses, revelam que a tortura e as execuções extrajudiciais tornaram-se práticas comuns da repressão colonial.

A partir de 1956, a guerra atingiu um novo patamar. Com a entrada de Guy Mollet no governo francês, a estratégia colonial passou a ser o esmagamento total da insurreição. O número de soldados franceses na Argélia ultrapassou 400 mil ao longo dos anos seguintes.

Em março de 1956, a FLN intensificou suas ações, promovendo atentados a bomba em locais públicos e emboscadas contra militares. A repressão aumentou proporcionalmente. Entre 1956 e 1957, aproximadamente 250 mil argelinos foram mortos ou desapareceram, segundo estimativas do historiador Pierre Vidal-Naquet.

A Batalha de Argel, travada entre janeiro e outubro de 1957, tornou-se um dos episódios mais brutais da guerra. A FLN lançou uma campanha de terror urbano, organizando atentados a bomba em cafés, mercados e sedes administrativas francesas. As mulheres da organização, como Djamila Bouhired e Zohra Drif, escondiam explosivos em cestos de compras para driblar a segurança colonial. Entre janeiro e junho, pelo menos 300 pessoas foram mortas nos ataques. Em resposta, o general Jacques Massu foi encarregado de esmagar a resistência em Argel, empregando a 10ª Divisão de Paraquedistas, que instaurou um verdadeiro regime de terror na cidade.

Os franceses implementaram um sistema de vigilância e repressão meticuloso, baseado em informações extraídas sob tortura. A tortura foi empregada em larga escala, como revelou o próprio general Massu em entrevistas décadas depois. O uso sistemático da gégène (choques elétricos nos genitais), afogamentos simulados e espancamentos brutais tornaram-se práticas rotineiras. Os militares franceses estabeleceram centros clandestinos de detenção, onde milhares de argelinos foram interrogados sob tortura. O jornalista Henri Alleg, em seu livro La Question, descreveu em detalhes sua própria experiência de tortura nas mãos dos paraquedistas franceses.

Os paraquedistas também realizaram operações de execução sumária. Corpos de insurgentes eram encontrados todos os dias em valas comuns ou boiando no mar. Estima-se que, apenas durante a Batalha de Argel, entre 3 mil e 7 mil argelinos tenham desaparecido. Muitos foram jogados ao mar de helicópteros, tática conhecida como “voos da morte”, posteriormente utilizada por ditaduras na América Latina.

A repressão foi eficaz em desmantelar a infraestrutura da FLN em Argel, mas teve um custo político alto para a França. As denúncias de tortura e execuções sumárias causaram indignação internacional. Intelectuais franceses como Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir denunciaram as atrocidades cometidas pelo Exército, e a opinião pública na metrópole começou a se voltar contra a guerra.

Nos anos seguintes, a FLN se reorganizou, intensificando sua guerrilha nas áreas rurais e ampliando seu apoio externo. O Egito de Nasser fornecia armas e treinamento, enquanto o Marrocos e a Tunísia serviam de bases para a luta armada. Em 1959, De Gaulle anunciou a “autodeterminação” da Argélia, um sinal de que a guerra estava se tornando insustentável para a França. Após anos de negociações e combates, os Acordos de Évian foram assinados em março de 1962, encerrando oficialmente o conflito. A Argélia declarou sua independência em 5 de julho de 1962, após um referendo que contou com apoio esmagador da população local.

O saldo final da guerra foi devastador. Estima-se que entre 400 mil e 1 milhão de argelinos tenham morrido no conflito, enquanto cerca de 30 mil soldados franceses perderam a vida. A brutalidade da repressão colonial e a resistência incansável do povo argelino marcaram a história como um dos conflitos mais sangrentos da era da descolonização.

Mesmo após a independência da Argélia, a França manteve estratégias para preservar sua influência. Uma delas foi a guerra econômica: enquanto negociava a retirada militar, Paris manobrou para manter controle sobre o petróleo do Saara. Em 1961, um ano antes da independência, a França assinou contratos de extração de longo prazo com empresas francesas, garantindo sua presença no setor energético argelino.

Outra estratégia foi o financiamento de grupos paramilitares contrários à FLN. Em 1961, a Organização do Exército Secreto (OAS), formada por ex-militares franceses, lançou uma série de atentados contra líderes nacionalistas e infraestrutura pública, tentando desestabilizar o governo argelino. Entre março e junho de 1962, a OAS matou cerca de 2 mil pessoas em atentados a bomba e execuções sumárias.

No campo diplomático, a França trabalhou para isolar a Argélia no cenário internacional. Durante as negociações dos Acordos de Evian (1962), Paris tentou impor condições que manteriam a Argélia subordinada, incluindo bases militares permanentes e privilégios para cidadãos franceses que permaneceriam no país. O governo argelino, liderado por Ahmed Ben Bella, rejeitou essas cláusulas.

Cerca de 1,5 milhão de argelinos foram massacrados, enquanto os invasores franceses perderam 25,6 mil soldados ao final do conflito. Segundo dados da Encyclopedia of African History (Kevin Shillington, 2013), mais de oito mil vilarejos foram destruídos e cerca de três milhões de pessoas foram forçadas a abandonar suas casas.

O custo social e humano da reação francesa à libertação da Argélia foi incalculável, mas a resistência argelina, firme e inabalável, demonstrou como é possível derrotar um inimigo imensuravelmente mais poderoso, como o imperialismo francês, e que a luta armada é a única maneira de garantir a liberdade de um povo.

A vitória da Revolução Argelina repercutiu por todo o mundo árabe, tornando-se um exemplo para todos os povos submetidos ao imperialismo. Entre os que se inspiraram na luta argelina, destacam-se os palestinos, que, em 2023, protagonizaram a mais ousada ofensiva de resistência contra a colonização sionista.

Assim como os argelinos enfrentaram os fuzis e as torturas francesas, os palestinos seguem resistindo contra os bombardeios e massacres da ditadura sionista, demonstrando que a independência de uma nação contra um invasor criminoso pode ser conquistada pela força da luta, mesmo sob condições tão díspares como a de palestinos e sionistas ou dos argelinos contra a poderosa França.

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