Terá crise no Sael aberto nova etapa na luta africana contra o imperialismo?

Especial África

Fábio Picchi e Juca Simonard

Derrota dos EUA no Afeganistão, seguida da resistência russa contra a OTAN, enfraqueceram a ditadura imperialista, que perde o controle sobre a região onde sua dominação é mais destrutiva: a África

A história recente do continente africano é trágica. Entre o final do século XIX e o início do século XX, enquanto o modo de produção capitalista adentrava sua etapa imperialista, acontecia na África uma corrida brutal pelo estabelecimento de colônias que pudessem suprir matérias-primas e mão-de-obra para a crescente indústria europeia. Países de desenvolvimento tardio, como Itália e Alemanha, não conseguiam competir com economias mais estabelecidas, como de França e Inglaterra. As últimas haviam se estabelecido sobre um vasto império colonial, enquanto as outras viam seu desenvolvimento capitalista limitado justamente pela falta de acesso a colônias.

Em sua obra “Imperialismo, Estágio Superior do Capitalismo”, Lênin dedica um capítulo à “partilha do mundo entre as grandes potências”. Com dados, o revolucionário russo mostra a velocidade do processo de colonização, que acompanha o ritmo da concentração de capital na mão dos monopólios dos países colonizadores. Se em 1876 a porcentagem de território pertencente às potências coloniais era de 10,8% do território africano, em 1900 já era 90,4% (Imperialismo, Estágio Superior do Capitalismo, Vladímir Ilitch Lênin, 1916). Políticos da época, como o empresário britânico Cecil Rhodes, que dominou através de suas empresas a região hoje correspondente a Zâmbia e Zimbábue (antiga Rodésia, em homenagem a seu “dono”), que abertamente defendiam a política imperialista:

“A ideia que calento representa a solução do problema social: para salvar os 40 milhões de habitantes do Reino Unido de uma mortífera guerra civil, nós, os políticos coloniais, devemos nos apoderar de novos territórios para o estabelecimento do excedente da população, para a aquisição de novos mercados para os produtos de nossas fábricas e das nossas minas”, disse Rhodes à época, em citação que Lênin reproduz em seu livro (idem). Rhodes ainda foi primeiro-ministro da África do Sul e ajudou a estabelecer o arcabouço legal que nos anos 1950 se consolidaria na segregação racial institucionalizada, conhecida como apartheid.

Dado que a partilha do mundo já estava completa, os países imperialistas só podiam guerrear entre si para reconfigurar essa partilha segundo sua própria força. A disputa foi resolvida em duas guerras mundiais, das quais os Estados Unidos, pouco expressivo na corrida colonial no início do século XX, emergiu como principal país imperialista.

As guerras e o enfraquecimento dos países colonizadores deu lugar a um período de lutas anticoloniais, e dessa luta, ao final dos anos 1980, praticamente todos os países africanos transformaram-se em nações independentes. O resultado geral foram governos africanos nacionalistas que, no período da Guerra Fria, procuravam uma barganha entre os dois lados do conflito, o imperialismo norte-americano e a União Soviética. A maioria dos países africanos chegou a integrar o Movimento Não Alinhado, fundado em 1961, em Belgrado, pelos chefes de Estado de Iugoslávia, Índia, Gana, Egito e Indonésia. 

O poder de barganha desapareceu com o fim da União Soviética em 1989, acompanhado da restauração capitalista na China, a destruição da Iugoslávia e outras tragédias que abriram espaço para a política neoliberal. A África se tornou palco para as piores mazelas do sistema capitalista mundial. No continente, a selvageria imposta pelos monopólios ficou gritante, impondo um duro retrocesso à África independente, que finalmente começa a mostrar sinais de desgaste.

Um desses sinais é a presença de investimento chinês no continente negro. Se em 2003 era de apenas US$ 73,8 milhões, em 2020 já era de US$ 4,2 bilhões. A China tornou-se o quarto maior investidor direto no continente, superando os Estados Unidos, atrás apenas de França, Reino Unido e Holanda. Em empréstimos, principalmente para obras muito necessárias de infraestrutura no continente, estima-se que os chineses tenham oferecido mais de US$ 150 bilhões entre 2009 e 2019, como parte da Iniciativa Cinturão e Rota, projeto também conhecido como Nova Rota da Seda (The Quiet China-Africa Revolution: Chinese Investment, The Diplomat, 22/11/2021).

Outro aspecto importante é a presença russa na África, que cresceu principalmente após a intervenção norte-americana na Líbia, quando grupos fundamentalistas islâmicos aproveitaram-se da queda de um governo forte para expandir sua atuação não apenas no norte do continente, mas na África Sub-Saariana. O combate ao “terrorismo” serviu para justificar a presença de efetivos militares imperialistas na África, que tinham mais interesse em justificar sua presença permanente nos países em que atuavam – protegendo os interesses dos monopólios franceses, canadenses e norte-americanos atuando na região – do que em derrotar seus inimigos. Para suprir a necessidade dos governos nacionalistas africanos, os russos surgiram como alternativa às tropas imperialistas com suas companhias militares privadas, a exemplo do Batalhão Wagner, famoso por sua atuação recente na operação militar russa na Ucrânia.

As sanções recentemente impostas à Rússia, porém, abriram uma nova oportunidade para o país, que viu seu comércio com países africanos crescer 43,5% nos primeiros oito meses de 2023, quando comparado ao mesmo período no ano passado (Russian Ministry Reveals 2023’s Top Five Trading Partners in Africa, Report Says, Sputnik, 30/9/2023).

A atuação sino-russa na África tomou as páginas da imprensa capitalista sob a alcunha de “Nova partilha da África”. Fala-se nos empréstimos abusivos feitos pela China, no autoritarismo patrocinado pelas tropas russas na região, mas a postura hipócrita não se sustenta diante da população africana esmagada por décadas de extorsão do Fundo Monetário Internacional (FMI) e patrocínio, principalmente norte-americano, de grupos armados reacionários por todo o continente. Rebeliões de caráter nacionalista como as ocorridas no Sael, em Mali, Burquina Fasso e Níger, mostram manifestantes empunhando a bandeira russa e queimando a de seu ex-colonizador, a França.

A crise imperialista deu lugar a uma crise de dominação do continente africano, que recuperou seu poder de barganha com o bloco sino-russo. Da luta anti-colonial dos anos 1960 a 1980, emergiu uma luta anti-imperialista, pelo desenvolvimento econômico africano e por uma independência não apenas formal, mas efetiva de seus ex-colonizadores. 

Com este especial, esperamos trazer aos nossos leitores um pouco da situação política atual de cada país, acompanhando a história recente de cada um deles. Organizamos a apresentação em cinco partes, cada uma representando uma das sub-regiões da África segundo divisão organizada pela União Africana.

Ocidental – Protesto no Níger após o golpe nacionalista, onde se destacam bandeiras da Rússia. Nos cartazes, em francês: “Abaixo as bases estrangeiras no Níger”, “Viva o Níger, viva a Rússia”, “A França deve sair”.
Norte – Os presidentes argelino Abdelmadjid Tebboune e chinês Xi Jinping, em encontro no meio de julho deste ano, onde aprofundaram as relações entre os países também para as áreas de segurança e defesa nacional. Ao norte do Níger, a Argélia negou à França permissão para uso de seu espaço aéreo.
Central – Na República Democrática do Congo, em frente à embaixada da França, um protesto contra a visita de Macron no início de março deste ano, na capital, Kinshasa. Entre os manifestantes, bandeiras da Rússia e a figura de Patrice Lumumba, liderança nacionalista histórica da RDC.
Oriental – A capital do Sudão, Cartum, é palco de enfrentamentos militares. Desde abril, um conflito entre o exército sudanês, comandado pelo general Abdel Fattah Al-Burhan, líder do governo, e as Forças de Suporte Rápidas (FSR), sob comando do general Mohamed Hamdan Dagalo eclodiu. Até então, ambos eram aliados, a crise aponta uma ação do imperialismo.
Sul – Julius Malema, líder dos Combatentes da Liberdade Econômica (CLE), da África do Sul. O movimento em seu programa inclui a nacionalização dos recursos minerais e da indústria sul-africana.
Mali, palco do primeiro na série de golpes nacionalistas recentes no continente africano, em 2021, na sequência de outro golpe, em agosto de 2020. Manifestação na capital, Bamako, em setembro daquele ano, na Praça da Independência, durante a comemoração dos 60 anos da independência do país. No cartaz se lê: “Morte à França e seus aliados”.
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