04.05.2025

Um romance mais realista do que fantástico de Franz Kafka

100 anos de O processo

Henrique Áreas

Publicado em 1925, mas escrito durante os primeiros anos da Guerra Mundial, O Processo é a descrição dos métodos assustadores dos tribunais contra o cidadão

“Se eu pintasse todos os juízes um ao lado do outro aqui no cavalete, e você tentasse defender-se em frente a eles, teria mais sucesso com esses do que poderia ter com a corte de verdade”

Foi quase por acaso que Kafka tornou-se um dos escritores mais influentes do início do século XX. Por acaso porque, morto muito jovem, aos 40 anos, de tuberculose, não publicou muito de seus escritos em vida, a maioria deles foram entregues ao seu melhor amigo, Max Brod. O desejo de Kafka era que seu amigo destruísse tudo. Para o bem da literatura universal, Brod decidiu não realizar o último desejo de Kafka, publicando os manuscritos. Entre eles, o que talvez seja o principal romance do autor, O Processo, publicado inacabado em 1925.

Kafka nasceu em Praga, capital do que é hoje a República Checa, em 3 de julho de 1883, mas que na época fazia parte do então poderoso Império Austro-Húngaro. Quando Kafka morre, em 3 de junho de 1924, o Império não existe mais. A maioria dos seus escritos, portanto, expressam a decadência do Império Austro-Húngaro, que acompanha, na realidade, o início da própria fase decadente do capitalismo, o imperialismo, marcada pela Primeira Guerra Mundial.

Esse é o ambiente no qual Franz Kafka escreve O Processo, publicado postumamente, por Max Brod, há exatos 100 anos, em 1925. Kafka começou a escrever o romance em 1914, tendo escrito a maior parte dele em 1915, portanto no início da guerra mundial.

O livro conta a história do escriturário-chefe de um banco, o que seria equivalente a um gerente de banco atual, Josef K., tratado na maior parte do livro somente como K. Certa manhã, ao acordar, ele descobre ser alvo de um processo criminal sobre o que não sabe, nem nunca saberá o conteúdo. Em resumo, o romance é a busca perturbadora de K. por compreender do que está sendo acusado e de como funcionam os tribunais.

A burocracia é uma prisão

“Alguém devia ter caluniado Josef K.; ele sabia que não tinha feito nada de errado, mas certa manhã foi preso”. Assim Kafka começa o romance, e até o fim, o personagem principal não consegue meios para encontrar respostas conclusivas sobre do que está sendo acusado, quem o acusou, como se defender, como funciona o tribunal. Tudo o que K. descobre durante sua busca será um labirinto burocrático. Cada porta que se entra é uma nova complicação.

O narrador deixa claro no livro que Josef K. está preso, e ele nunca deixará de ser um prisioneiro durante o romance. Porém, o prisioneiro está livre para fazer as suas coisas, trabalhar no banco, ir para casa. É a própria existência do processo que torna K. um prisioneiro. Na realidade, K. já é um prisioneiro do emaranhado burocrático que envolve sua vida de escriturário, o que é apenas agravado pela existência do processo. Durante o romance, se descobre que os escritórios do tribunal estão em todos os lugares. São salas escuras, sem ar, abafadas, localizadas nos sótãos de prédios na periferia da cidade.

O romance mostra um mundo burocrático decadente. Os personagens que fazem parte desse mundo são seres sem alma, escravos daquele labirinto. Porém, é mais do que isso. Conforme o romance se desenvolve, descobre-se que tudo é parte desse emaranhado burocrático.

“Mesmo agora, quase não se mexeu quando o pintor debruçou-se sobre ele e, sussurrando em seu ouvido para não ser ouvido do lado de fora, disse:

“– Essas meninas também pertencem à corte.

“– Como assim? perguntou K., inclinando a cabeça de lado para olhar para o pintor.

“Contudo, ele se sentou de volta na cadeira e, meio de brincadeira, meio de explicação, disse:

“– Bom, tudo pertence à corte.

“– Está aí algo em que eu nunca tinha reparado – К. comentou, cordialmente, pois esse comentário geral do pintor fizera do comentário anterior, sobre as meninas, muito menos perturbador.”

Em suma, K. está preso porque no final das contas todos estão presos nessa sociedade burocrática decadente.

Mais realismo do que fantasia

Ao descrever esse mundo burocrático, em que quase não há diferença entre a prisão e a liberdade, Kafka acaba descrevendo os métodos assustadores dos tribunais.

Suas descrições fantásticas de como funcionam as cortes expressam o que elas são na realidade. 100 anos depois da publicação do romance, as descrições assustadoras que o narrador faz do processo e dos tribunais são em muitas parte realistas.

Kafka expressou no romance a tendência cada vez mais autoritária da sociedade burguesa decadente. O fascismo, que tomaria conta da Europa pouco tempo depois que Kafka escreveu o livro, não era nada mais do que a expressão máxima e em certa medida inicial do que a burguesia decadente transformaria as instituições: uma ditadura permanente contra o cidadão.

A citação do livro que melhor sintetiza o funcionamento dessa ditadura é a fala do pintor Titorelli, um “especialista” no funcionamento do tribunal, que se dispõe a ajudar K., aproveitando-se de sua influência sobre os juízes, já que ele frequenta a corte, pintando quadros dos magistrados, em diálogo com o escriturário:

“– Com certeza, você tem mais familiaridade com o tribunal do que eu, que sei pouco mais do que o que ouvi falar, e ouvi coisas de muita gente diferente. Mas todos concordam em uma coisa: que, quando acusações maldosas são feitas, elas não são ignoradas, e que, uma vez que a corte fez uma acusação, está convencida da culpa do acusado, e fica muito difícil fazer com que pense de outro modo.

– Muito difícil? – perguntou o pintor, jogando uma mão no ar. – É impossível fazer com que pense de outro jeito. Se eu pintasse todos os juízes um ao lado do outro aqui no cavalete, e você tentasse defender-se em frente a eles, teria mais sucesso com esses do que poderia ter com a corte de verdade”.

O cidadão é culpado até que se prove o contrário. Mas aqui não é mais o fim do direito fundamental à presunção de inocência; é o próprio tribunal que está acusando, que está convencido da culpa do réu.

Essa passagem do livro, assim como outras que deixaremos ao leitor no final deste artigo, poderia ser interpretada como algo fantástico, exagerado. Talvez fosse assim quando Kafka escreveu o romance, mas certamente não é hoje. A passagem é muito realista e descreve exatamente, por exemplo, o funcionamento recente do Judiciário brasileiro. No julgamento do Mensalão, na Lava Jato e agora nas ações de Alexandre de Moraes, é o tribunal, ou o próprio juiz que acusa e que julga. O juiz pode ser ao mesmo tempo a vítima, o acusador e quem vai julgar o próprio caso. É o juiz que faz a lei e a lei é ditada muitas vezes de sua própria cabeça, valendo arbitrariamente para alguns casos e não valendo para outros.

O cidadão não tem nenhuma garantia, pode ser acusado de qualquer coisa, a qualquer momento, sendo essa coisa um crime ou não. A defesa é inócua. Se um juiz decidir que o cidadão é culpado de antemão, não adianta provar inocência, em si já uma inversão. Esse é o funcionamento do tribunal no romance de Kafka, esse é o funcionamento do tribunal no Brasil atual.

Deixemos que o próprio Kafka explique o funcionamento do Judiciário totalitário e que o próprio leitor tire as conclusões da assustadora realidade atual da descrição. Os grifos são nossos:

“Ele [o advogado] tinha, claro, começado a trabalhar imediatamente e estava quase pronto para enviar os primeiros documentos. Seriam bem importantes, porque a primeira impressão conferida pela defesa em geral determinava todo o curso dos procedimentos. Infelizmente, no entanto, era preciso ainda deixar claro a K. que os primeiros documentos enviados, em geral, nem são lidos pela corte. Eles, simplesmente, juntam-nos com os outros documentos e apontam que, por ora, questionar e observar o acusado são coisas muito mais importantes do que qualquer coisa escrita. Se o requerente insistir, eles acrescentam que antes de chegar a alguma decisão, assim que todo o material é reunido, com toda a consideração, é claro, a todos os documentos, então esses primeiros documentos a serem enviados também são checados. Contudo, infelizmente, nem mesmo isso é completamente verdade, os primeiros documentos enviados costumam ser desviados ou perdidos de todo e, mesmo que sejam guardados até o final, não são lidos, embora o advogado soubesse de tudo isso apenas por rumores. Tudo isso é muito triste, mas não lhe falta de todo a justificativa. K., no entanto, não devia esquecer-se de que o julgamento não seria público e, se a corte considerar necessário, ele pode ser tornado público, mas não há lei que mande que seja. Como resultado, o requerente e sua defesa não têm nem acesso aos registros do tribunal, e principalmente à acusação, e isso significa que não se sabe, em geral — ou pelo menos não precisamente —, de que têm de tratar-se esses primeiros documentos, ou seja, se eles contêm algo de relevante para o caso isso é apenas conseguido com sorte ou coincidência. Se algo acerca das acusações individuais e dos motivos delas fica claro ou pode ser suposto enquanto o acusado está sendo questionado, então é possível elaborar e enviar documentos que de fato estão relacionados ao caso e às provas presentes, mas não antes. Condições como essas, claro, colocam a defesa em posição bastante desfavorável e complicada. Mas a intenção é essa mesmo. Na verdade, a defesa não é tão permitida segundo a lei, mas apenas tolerada, e ainda há certa discussão quanto a se as partes mais relevantes da lei implicam isso mesmo. Portanto, falando estritamente, não há algo como um advogado reconhecido pela corte, e qualquer um que se ponha perante a corte como advogado basicamente não passa de um intrometido. O efeito de tudo isso, claro, é remover a dignidade de todo o procedimento. Na próxima vez em que K. se dirigisse ao tribunal, ele talvez fosse querer dar uma olhada na sala dos advogados apenas para dizer que tinha visto. Bem possível que ficasse bastante chocado com o tipo de pessoas que veria reunidas ali. A sala em que são alocados, com o espaço apertado e o teto baixo, seria suficiente para mostrar o desprezo que a corte tem por essas pessoas. A única luz da sala vem de uma janelinha tão alta que, se alguém quisesse olhar por ela, teria de pedir a um dos colegas que o sustentasse nos ombros, e até a fumaça da chaminé em frente lhe subiria ao nariz e deixaria o rosto preto. No piso dessa sala – para dar outro exemplo das condições do local, há um buraco que estava lá fazia já mais de um ano, não tão grande que um homem possa cair dentro, mas grande o bastante para o pé desaparecer nele. A sala dos advogados fica no segundo andar do sótão; se o pé da pessoa passar mesmo por ali, aparece no primeiro andar do sótão, abaixo, bem no corredor no qual ficavam aguardando os litigantes. Não é exagero quando os advogados dizem que tais condições são uma desgraça. Reclamações feitas à administração não surtem o menor efeito, mas os advogados são estritamente proibidos de mudar qualquer coisa na sala por conta própria. Mas até mesmo tratar os advogados desse jeito tem suas razões. Eles querem, o máximo possível, impedir qualquer tipo de defesa, tudo deve ficar a cargo do acusado. Não é um ponto de vista ruim, basicamente, mas nada pode estar mais errado do que tirar disso que os advogados não são necessários para o acusado nesse tribunal. Pelo contrário, não há tribunal em que fossem mais necessários do que esse. Isso porque os procedimentos são geralmente mantidos em segredo, não apenas do público, mas também do acusado. Somente até onde isso é possível, claro, mas é possível em grande medida. E o acusado não pode também ver os registros do tribunal, e é muito difícil inferir o que está nos registros do tribunal do que foi dito durante o interrogatório com base neles, principalmente para o acusado, que está em situação complicada e enfrenta todo tipo possível de preocupação a distraí-lo. É então que começava a defesa. O advogado de defesa, normalmente, não pode estar presente quando o acusado é interrogado, então depois, e se possível ainda na porta da sala de interrogatório, ele precisa aprender o que puder com ele e extrair o máximo que conseguir que seja útil, ainda que em geral o que o acusado tem a reportar costume ser bem confuso. Mas isso não é o mais importante, e de fato não há muito que possa ser aprendido desse modo, embora nesse sentido, como em qualquer outra coisa, um homem competente aprende mais do que outro. Não obstante, o mais importante são os contatos pessoais do advogado; é aí que jaz o valor real de consultar um advogado. Ora, muito provavelmente, K. já tinha aprendido por experiência própria que, entre suas ordens inferiores, a organização do tribunal certamente tem suas imperfeições. O tribunal é estritamente fechado para o público, mas funcionários que se esquecem de suas funções ou aceitam propina, até certo ponto, mostram onde estão as falhas. É por aí que a maioria dos advogados se enfia, é o momento de subornar e extrair informações; houve, pelo menos em épocas mais remotas, incidentes nos quais documentos foram roubados. Não se pode negar que resultados surpreendentemente favoráveis foram conseguidos pelo acusado desse modo, por tempo limitado, e esses advogados inferiores andam daqui para lá com base neles e atraem novos clientes, mas a longo prazo, nos procedimentos, não significava nada, ou nada de bom. As únicas coisas de verdadeiro valor são os contatos pessoais honestos, contatos com funcionários superiores, embora funcionários superiores dos níveis inferiores, veja bem. É esse o único jeito de fazer com que o progresso do julgamento seja influenciado, quase impossível de notar inicialmente, claro, mas dali em diante ficaria bem mais visível. Não há, claro, muitos advogados que podem fazer isso, e K. fizera boa escolha nesse sentido. Não havia, provavelmente, mais do que um ou dois que tivessem tantos contatos quanto o Dr. Huld, mas não se importam com a companhia da sala dos advogados e não têm relação alguma com ela. Isso significa que têm ainda menos contato com os funcionários do tribunal. Não é necessário ao Dr. Huld ir até o tribunal, aguardar nas antessalas para que cheguem os juízes de instrução, se aparecerem, e tentar conseguir algo que, de acordo com o humor dos juízes, em geral era mais aparente que real e mais comumente nem mesmo isso. Não, K. vira por si mesmo que os funcionários do tribunal, inclusive uns dos mais altos, expressam-se sem que lhes seja pedido, prontamente dão informação totalmente aberta ou pelo menos fácil de entender, discutem os estágios seguintes dos procedimentos, na verdade, em alguns casos são fáceis de serem conquistados e bastante dispostos a adotarem o ponto de vista do outro. Contudo, quando isso acontece, não se pode confiar neles em grande medida, pois, por mais firme que declarem esse novo ponto de vista, a favor do acusado, podem muito bem retornar a suas salas e escrever um relatório à corte que diz exatamente o oposto, e podem muito bem pegar ainda mais pesado com o acusado do que em sua visão original, da que insistiriam que foram completamente dissuadidos. E, claro, não há como defender-se disso, algo dito em particular é, de fato, particular e não pode ser usado em público. Não é algo que facilita para a defesa manter a opinião desses cavalheiros. Por outro lado, é verdade também que os cavalheiros não se envolvem com a defesa que será, claro, feita com grande expertise apenas por motivos filantrópicos ou para serem amigáveis, em certo sentido seria mais correto dizer que eles a têm também alocada sobre si. É aí que as desvantagens da estrutura de uma corte que, desde o início, estipula que todos os procedimentos sejam conduzidos em particular, vêm com toda a força. Em julgamentos normais, medíocres, os funcionários têm contato com o público, e são muito bem equipados para tanto, mas nesse caso não; os julgamentos normais seguem seu curso quase por conta própria, precisando somente de um cutucão aqui e ali; mas, quando têm de lidar com casos que são especialmente difíceis, ficam tão perdidos quanto ficam em geral com outros, muito mais simples; são forçados a passar o tempo todo, dia e noite, com suas leis, então não têm a sensibilidade ideal para relacionamentos humanos, e isso é uma deficiência das mais sérias. É nesses momentos que vêm pedir ajuda ao advogado, com o assistente logo atrás, carregando os documentos que normalmente são mantidos tão secretos. É possível ver muitos cavalheiros nessa janela, cavalheiros de que jamais se suspeitaria, olhando por essa janela, desesperados, para a rua abaixo, enquanto o advogado, em sua mesa, estuda os documentos para poder dar-lhes bom aconselhamento. E em momentos como esse é possível ver também com quão excepcional seriedade esses cavalheiros encaram sua profissão e como são colocados em grande confusão por dificuldades que apenas não são de sua natureza superar. Mas não se encontram em posição fácil, considerar fácil a situação deles seria fazer-lhes injustiça. As posições diferentes e as hierarquias da corte são intermináveis, e mesmo alguém que conhece todos os meandros nem sempre sabe dizer o que vai acontecer. Mas, mesmo para os funcionários inferiores, os procedimentos nos tribunais são usualmente mantidos em segredo, de modo que mal podem ver como os casos com que trabalham prosseguem, as questões do tribunal aparecem em seu campo de visão em geral sem que eles saibam de onde vieram, e eles seguem adiante sem de fato saber aonde vão. Então, funcionários civis como esses não são capazes de aprender as coisas que se pode aprender ao estudar os estágios sucessivos pelos quais passam os julgamentos individuais, o veredicto final e os motivos dele. É-lhes permitido apenas lidar com a parte do julgamento a que são alocados pela lei, e em geral sabem menos do resultado de seu trabalho depois que deles parte do que a defesa, ainda que a defesa em geral mantenha contato com o acusado até o julgamento estar quase no fim, de modo que os funcionários do tribunal podem obter informações úteis com a defesa. Mesmo tendo tudo isso em mente, K. ainda ficava surpreso com os funcionários irritados e, em geral, expressando-se com relação aos litigantes dos modos menos lisonjeiros, experiência essa partilhada por todos. Todos os funcionários vivem irritados, mesmo quando parecem estar calmos. Isso causa muita dificuldade para os advogados juniores, claro.”

O que explica que Kafka consiga ser tão realista ao descrever os meandros do funcionamento dos tribunais e de um processo, mesmo escrevendo um romance que deveria ser fantástico? O escritor estava expressando uma tendência geral da sociedade burguesa decadente, no imperialismo. As instituições democráticas, que nunca foram realmente democráticas, estavam sendo demolidas. O fascismo, que logo depois toma conta da Europa e em certo sentido dos principais países do mundo, é a expressão máxima dessa decadência da democracia burguesia.

Hoje, 100 anos depois, o que vemos é que o fascismo é a norma dessas instituições do regime político. O imperialismo destruiu qualquer resquício do que se poderia chamar de democracia. Kafka teve a sensibilidade de perceber o que estava acontecendo e retratar, ainda que de modo ficcional, essa tendência assustadora. A história aterrorizante vivida por Josef K. é a nossa própria história.

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